Com “Meu Rei” (2015), a diretora francesa Maïwenn Le Besco apresenta um drama de relacionamentos cujo ritmo lembra um pouco o do tunisiano Abdellatif Kechiche em “Azul é a cor mais quente” (2013). A tentativa de uma representação ultrarrealista, principalmente através das escolhas de planos e fotografia, porém, começa somente após algum tempo de filme, e ao atentarmos para a sinopse do longa, essa escolha faz muito sentido.

Em “Meu Rei”, acompanhamos Tony (Emmanuelle Berçot), uma mulher que se recupera de uma lesão no joelho em um centro de reabilitação. Nesse meio tempo, ela relembra seus últimos dez anos de relacionamento com Georgio (Vincent Cassel), um homem que trouxe extremos de alegria e tristeza a sua vida. Eles se conhecem em uma boate, e do encontro até o casamento, o espectador pode muito bem achar que está vendo uma comédia romântica, na qual a protagonista introvertida ganha novas cores em sua vida ao se envolver com um homem charmoso, amalucado e espontâneo.

O ritmo e, principalmente, os diálogos, dão conta de nos inebriar no relacionamento de Tony e Georgio. Este último é interpretado por Cassel de maneira cativante, e se torna fácil entender como uma advogada certinha como Tony se apaixonaria por um cara que lhe tira de zonas de conforto e faz coisas como dar, literalmente, seu aparelho de telefone a ela. Só quem vê tanta energia como algo suspeito é Solal (Louis Garrel), irmão de Tony, num papel que equilibra o cômico e o ranzinza de forma interessante quando pensamos que seu intérprete é visto tantas vezes fazendo personagens que têm um perfil similar ao de Georgio.

Caindo na real

Antes de entender a desconfiança do irmão, Tony transforma Georgio no que o título do filme apresenta: o rei, centro de sua vida. E é aí que o filme deixa de apresentar suas pequenas distorções de comédia romântica do flashback para se tomar o drama que o presente no tempo diegético prenuncia. A figura solar de Georgio é também extremamente problemática: ele não sabe equilibrar seus impulsos à vida de casado, e a passividade de Tony ao tentar entende-lo atrapalha mais que ajuda. A gravidez, longe de ser um momento de plenitude, serve para que ela caia na real. Mas entre cair na real e deixar de amar alguém, é um longo caminho.

Esse longo caminho é o que faz com que o joelho machucado de Tony seja o símbolo ao redor do qual o resto do filme se organiza. Ainda que seja uma mulher instruída e independente economicamente, a personagem de Berçot almeja também (e ardentemente) a realização emocional que casamento e família poderiam lhe dar, enfrentando toda sorte de frustração nesse caminho. Há momentos em que o espectador se pergunta “como essa mulher pode aguentar isso do marido?”, ao passo que esse mesmo espectador não precisa procurar fundo na memória a lembrança de inúmeras mulheres que já tomaram decisões exatamente como as de Tony. É essa contradição que dá peso e realismo a uma personagem interpretada com bastante cuidado por Berçot, que nunca permite que a nossa empatia para com Tony se perca, mesmo quando somos tentados a abandoná-la por conta de alguns maneirismos no roteiro. Queremos vê-la caminhar com as próprias pernas novamente, literal e simbolicamente.

O roteiro, aliás, parte de uma premissa fantástica de mostrar uma abordagem sincera dos percalços de um relacionamento que transita entre as fronteiras do intenso e do abusivo, mas não parece saber o que fazer em longo prazo com ela. São vários os altos e baixos e os repetitivos padrões de abandono e perdão, mas o final em aberto acaba por deixar um certo gosto de frustração, já que a diretora opta por um anticlímax cuja função trai a metáfora do joelho que ela passa mais de duas horas construindo.

Por sorte, temos em “Meu Rei” um trabalho interessante de direção de elenco, aliado a personagens críveis, mesmo em suas estranhezas. Georgio, por exemplo, é um cafajeste de marca maior, o tipo de cara com quem qualquer mulher topa na vida pelo menos uma vez e, para o bem ou para o mal, não dá para ficar impassível perante ele. Para leva-lo do extremo do chame ao extremo da falta de noção para com a família, Cassel é cuidadoso de dar ao personagem pistas que justificam esse comportamento. Não por acaso, um dos poucos momentos em que ele é sincero com Tony é justamente um dos poucos em que demonstra fragilidade.

Uma tênue linha entre paixão e abuso

A dinâmica de casal em “Meu Rei” apresenta algumas colocações possíveis dignas de nota. Vemos que, se por um lado, Tony precisa colocar Georgio no centro de tudo para dar sentido completo à vida, ele, por sua vez, sente a obrigação de ver-se desempenhando papéis simbólicos nos quais merece tal posição. A pressão social para a mulher se realizar através de um relacionamento e a pressão social para o homem se apresentar como autoridade provedora são debatidos nas entrelinhas, muito sutilmente, e em especial, a partir das frustrações que isso gera.

O caráter psicologicamente abusivo do relacionamento de Tony e Georgio é outro ponto que gera certo desconforto no longa. Maïwenn Le Besco não apresenta esses momentos de abuso de forma tão explícita quando eles acontecem, e não raro um espectador desatento a tais questões pode muito bem confundi-los com rompantes de paixão. A vida tem dessas, nem tudo vem com bandeiras vermelhas assinalando os momentos de perigo, mas ainda assim é difícil não se incomodar com tal aspecto na escolha de direção de Le Besco.

Quando Georgio fica bravo por Tony conseguir um cliente importante no trabalho porque isso arruína a programação de um jantar romântico deles, por exemplo, essa atitude se enquadra na longa lista de outras ações egoístas dele, as quais muitas desmerecem a vida de Tony para além do casamento. Quando esse egoísmo encontra a vida familiar, ela se torna mais aparente: qualquer problema de Georgio é desculpa para abandonar temporariamente mulher e filho. São situações incômodas de ver na tela e de acompanhar dentro do período de dez anos da vida das personagens, mas, de novo: quem não conhece alguém que passa ou passou por algo muito parecido?

Esse é o trunfo e o calcanhar de Aquiles de “Meu Rei”. Minha avó costumava dizer que “no começo tudo são flores; depois vêm os horrores”, e tal parece ser o mote de “Meu Rei”. Para além desse “detalhe”, é um filme dedicado às questões do emocional num tratamento maduro, ainda que um tanto neutro em seu posicionamento, mas vale a conferida.