Miles Davis (1926-1991) é um ícone cultural de dimensões tão vastas que a sua música parece quase secundária ante os feitos do homem como contestador de barreiras sociais, raciais e do establishment no jazz. Dito isso, qualquer tentativa de enquadrá-lo nas meras duas horas de um longa-metragem vai parecer redutora e simplista, e Miles Ahead, o filme de estreia do ator Don Cheadle (Hotel Ruanda, trilogias Homem de Ferro e Onze Homens e um Segredo) na direção, também não escapa a essa limitação. Mas, dentro dela, o mínimo que se pode dizer é que Cheadle fez um trabalho eficiente e cheio de méritos.

Ao lado de Louis Armstrong, Duke Ellington, Charlie Parker, Thelonious Monk e John Coltrane, o trompetista Miles é um dos grandes arquitetos do jazz, esse gênero que valoriza a expressão espontânea e a improvisação, e que é a grande contribuição dos Estados Unidos à história da música, assim como o samba no Brasil (lamentavelmente, não há muito espaço para mulheres nesse rol, para além das grandes cantoras, como Billie Holiday, Ella Fitzgerald e Sarah Vaughan; grandes instrumentistas, como a baterista Terri Lyne Carrington e as pianistas Mary Lou Williams e Geri Allen – talvez o maior nome do instrumento na atualidade – foram tão depreciadas e silenciadas quanto os grandes músicos brancos, numa versão ao mesmo tempo patriarcal e paternalista de racismo criada por críticos, sobretudo europeus). Na verdade, para dar conta da esfinge Miles – enigmática e monumental, à maneira de Bob Dylan –, seria preciso um documentário em dez partes, como a série Jazz, de Ken Burns (2001), e ainda assim não se chegaria a um retrato completo.

O que o filme de Cheadle, um projeto de sonho do ator, que levantou o financiamento e filmou sem o apoio de um grande estúdio (sinal de que grandes músicos negros que não gravam country, como Ray Charles, ou se tornam brancos, como Michael Jackson, ainda não sugerem cifrões para os executivos de Hollywood), tem a oferecer é um recorte que dá a medida da grandeza e da complexidade do artista, ainda que gaste mais tempo com a personalidade agressiva e os dramas pessoais de Miles do que com suas realizações musicais. Ao fim do filme, sabe-se que Davis é reverenciado por todos, mas não se sabe o quê, afinal, ele criou para ser tão aclamado.

A trama tem início no fim da década de 1970, quando Miles já está há cinco anos sem gravar. Enclausurado e deprimido, ele se limita a escutar gravações antigas e rememorar o relacionamento com Frances Taylor (a ótima Emayatzy Corinealdi), sua ex-mulher. Na cabeça do músico, tudo está como deveria ser: sua motivação atual é conseguir a próxima carreira de cocaína, enquanto ele descansa sobre o status de lenda da música. Mas as pressões do mundo exterior adentram sua ilha: fãs, conhecidos, jornalistas de música e executivos da indústria exigem que ele volte à ativa, ou tentam se promover às suas custas.

O repórter Dave Braden (Ewan McGregor) é um desses – sem muito prestígio na revista onde trabalha, vindo de um divórcio recente, ele espera conseguir revelar a verdade sobre o silêncio de Miles, e, se possível, obter a muito comentada gravação que o músico teria feito recentemente, a qual marcaria a sua volta à música. Braden não está sozinho: um executivo inescrupuloso da gravadora de Miles, Harper Hamilton (Michael Stuhlbarg, de Homens de Preto 3), quer não apenas pôr as mãos na fita, como usar Davis para alavancar um jovem trompetista (Keith Stanfield) que ele contratou recentemente. O roubo da gravação de Miles é metáfora encontrada pelo roteiro (também de Cheadle, em parceria com Steven Baigelman) para a busca do músico pelo reencontro da própria voz, da inspiração musical.

A trama reflete uma situação real vivida pelo artista: o longo silêncio entre 1975 e 1980, quando um Miles drogado e alquebrado acharia forças para voltar aos estúdios e às turnês, sem conseguir, porém, abandonar de vez a dependência, que destruiria sua saúde e o levaria à morte em 1991, aos 65 anos. A relação entre Miles e Dave, por sua vez, permite ao público conhecer outros episódios marcantes na vida do músico, como suas apresentações ao lado de lendas do jazz, como Coltrane, Wayne Shorter e Herbie Hancock (os dois últimos marcam presença no fim do filme, numa apresentação ao lado de Cheadle, que ainda conta com a baixista Esperanza Spalding), a turbulenta vida ao lado de Frances, e episódios de racismo vividos pelo músico.

Mas, sem o contexto maior das realizações concretas do artista – suas sucessivas revoluções nos estilos do jazz, seu jeito único de tocar trompete, suas tentativas de integração do gênero com o rock, o pop e até o hip-hop – os episódios parecem soltos, sem o arco dramático conciso de filmes como Ray (2004) ou Johnny & June (2005). O tempo todo na obra, as pessoas emudecem de admiração na presença do músico, mas um espectador sem a intimidade de Cheadle (ou de um jazzófilo) com o biografado pode ficar indiferente a tanto espanto e adulação. As caracterizações dos personagens além de Miles e Frances também são rasas: McGregor tem uma função meramente explicativa no filme, apresentando os dramas de Davis para o espectador, enquanto Harper e o trompetista Junior (Stanfield) são antagonistas fraquinhos, facilmente esquecíveis.

Onde o filme cumpre a expectativa é na atuação de Cheadle: sua interpretação intensa, quase feroz de Miles é exata desde a expressão angustiada no rosto até a emulação perfeita da voz rouca do músico. Os humores voláteis, a postura arrogante e orgulhosa de Miles, sua infidelidade, suas contradições quase tão férteis quanto sua música estão todas tangenciadas na performance de Cheadle, desde já um dos grandes exemplos de atuação de 2016. Faltava só unir essa intensidade expressiva a um roteiro mais apaixonado e menos correto, redondinho. Miles Davis merecia mais, mas Miles Ahead é uma porta de entrada simpática e reverente a uma das mentes mais fascinantes e turbulentas a iluminar a música americana.