Como é estranha e confusa essa tal vida adulta. O “corre” que nunca termina, os prazos, os compromissos, os sacrifícios, o medo de ser visto como diferente, de ser posto à margem, de se encontrar só consigo mesmo. Como tomar parte nesse mundo? Como fazer diferente, e melhor? Como ser feliz e realizado nessa ciranda tão complicada?

Os dilemas do fim da adolescência são comuns a todos nós, e já renderam um material fascinante em livros, peças, filmes e séries de TV, de O Apanhador no Campo de Centeio a Curtindo a Vida Adoidado, para ir da sombra à luz. Como dizer, então, algo de novo sobre um assunto que já foi tão explorado, e sobre qual parece haver cada vez menos a ser dito? O curta Nada, de Gabriel Martins (MG/2017), mostra, sem alarde e com muita convicção, que há todo um universo de coisas não-ditas, de visões que ainda não ganharam expressão no cinema, como a do seu filme, que opta por uma olhar feminino, negro, brasileiro e questionador da vida na cidade, a partir de sua protagonista, Bia (a rapper mineira Clara Lima).

Sempre metida num gorro que traz a estampa de um olho, Bia parece ver o que ninguém mais vê. Seus colegas de escola estão todos ansiosos e animados com a iminência do ENEM, o exame que, no Brasil, garante a entrada em universidades públicas. Bia, não. A ela, essa vontade de se conformar às expectativas que deveriam ser a realização máxima para jovens como ela soa extremamente suspeita. Todos os adultos à sua frente parecem movimentar-se numa zona apertada, claustrofóbica, de felicidade, contentando-se com uma ida ao cinema, a chance de comprar um produto de uma marca famosa, de pagar as contas no fim do mês. Bia quer mais da vida. Fã de rap, ela se tranca em seu quarto, recitando letras sobre esse mundo esquisito, para o único interlocutor que lhe compreende – ela mesma.

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Pois ninguém mais entende, ou parece sequer lhe ouvir. Seus pais são carinhosos e incentivadores, mas não entendem como puderam trabalhar tantos anos para lhe dar um lar e uma boa educação, apenas para ela, na visão deles, querer viver num plano idealizado (e egoísta) de evitar responsabilidades. Na escola, a coordenadora está perplexa: como assim, você não almeja ser alguém na vida, não quer ter um trabalho, olhar-se no espelho orgulhosa por assumir responsabilidades (sempre elas) e receber um salário? Os colegas a ignoram – Bia é só uma esquisita, e não tem nada com a euforia deles de poder aprender uma profissão e conseguir um emprego. Mesmo uma amiga próxima, Sweet (a também rimadora Bárbara Sweet), a alerta de que a vida não espera, de que as contas estão aí e que é preciso arcar com as obrigações, sejam elas justas ou não.

O roteiro e a direção seguros de Martins mostram ambos os lados dessa equação – as possibilidades e consequências que existem nas duas escolhas, a de entrar na dança e a de retirar-se dela, e como cada uma embute o seu quinhão de razão. Bia não é uma heroína, uma visionária, o ponto fora da curva, para usar o jargão detestável e onipresente dos manuais de administração e negócios; é uma adolescente sensível, com muito do solipsismo dessa fase da vida, que acha o sistema de ingresso e ascensão social do Brasil, à base quase apenas do sucesso financeiro, injusto e paralisante para o espírito. Tão mais doloroso, portanto, que questões de raça e classe só inflamem ainda mais as expectativas – “você é a primeira pessoa da família que tem a oportunidade de entrar na faculdade”, recrimina seu pai, um trabalhador negro de classe média, assim como a mãe. Bia tem consciência disso, e o fato de não querer se enquadrar nessa definição de sucesso é mais dilacerante do que libertadora.

Sem oferecer respostas fáceis, e lançando um olhar tão afiado quanto lírico sobre o que é ser jovem, mulher e negra no Brasil, Nada é um curta modelar, que não perde nem um segundo se afastando de sua reflexão central. Nem tudo funciona à perfeição – os diálogos às vezes são artificiais, a personagem da coordenadora (Karine Teles, de Que Horas Ela Volta?) é caricata demais –, mas o filme tem questões intrigantes para lançar ao espectador. Bia, afinal, pode fazer diferente, mas não há nenhuma garantia de que retirar-se do “sistema” traga felicidade plena. Sua única certeza é a dúvida. Ela, porém, prefere pedir, corajosamente, ao menos o direito de viver, de forma humana, inteira e sem subterfúgios, a sua confusão interior.