“Moby Dick”, o livro do escritor Herman Melville, é uma das maiores obras (em tamanho também) da história da literatura americana. Traz a maior baleia da ficção, a do título, e personagens humanos com obsessões e vontade de viver capazes de se equiparar à grandiosidade da criatura. Porém, e isso é desconhecido para algumas pessoas, Melville se inspirou, parcialmente, num relato real para criar sua obra-prima: a história do naufrágio do navio Essex, que partiu de Nantucket – mesma cidade onde “Moby Dick” se inicia – para caçar baleias e, após um bom tempo de viagem, foi atacado por uma enorme baleia branca com disposição feroz. Depois do ataque, os tripulantes do navio se viram numa luta pela sobrevivência contra a fome e a natureza.

No Coração do Mar é a adaptação para o cinema do relato do naufrágio do Essex, intercalado com muita reverência por Melville e seu “Moby Dick”. O filme do diretor Ron Howard começa com o próprio Melville (interpretado por Ben Whishaw) chegando à casa do último sobrevivente do navio, Thomas Nickerson (Brendan Gleeson), para ouvir o seu relato. É Nickerson quem vai nos contar a história ocorrida décadas antes, começando pela rivalidade entre o capitão George Pollard (Benjamin Walker) e o primeiro oficial Owen Chase (Chris Hemsworth), até o encontro fatídico com a assustadora baleia branca e as suas consequências.

Howard abre o filme com uma narração sobre monstros marinhos – proveniente de Melville, que se refere às baleias desse modo diversas vezes no livro – e até nos mostra alguns pequenos tubarões, talvez querendo evocar nossas lembranças de Tubarão (1975). Howard certamente logo nos mostra um monstro maior, e a sua concepção visual impressionante nos faz ter uma noção poderosa do que deve ter sido a caça de baleia em meados do século XIX. A primeira cena de perseguição e arpoamento, por exemplo, é um prodígio de som, de montagem e de efeitos por computação gráfica: o diretor nos mostra o que está acontecendo de forma precisa, de modo que compreendemos o significado da corda “acabando” quando a baleia arpoada mergulha para as profundezas e o perigo ao qual aqueles homens se submetiam, aumentando o suspense.

O objetivo de Ron Howard aqui é criar um espetáculo de som e imagem, e nisso ele é completamente bem sucedido. O filme entretém e prende a atenção. Chris Hemsworth, como o protagonista, tem uma legítima atuação de “astro de cinema”, deixando seu carisma e sua presença em frente à câmera fazerem o trabalho pesado. Claro, o comprometimento do ator, e de muitos do elenco também, de emagrecer bastante para retratar o desespero físico dos personagens do meio para o fim da história é notável, mas nem mesmo nessas cenas o ator desaparece dentro do papel – além disso, essa história do emagrecimento dos atores recebe uma ajudinha da maquiagem para criar o visual praticamente cadavérico dos personagens em algumas cenas.  Já seus companheiros de cena Walker e Cillian Murphy têm alguns momentos mais dramáticos para aproveitar e se saem bem. E o jovem Nickerson é vivido pelo eficiente Tom Hollander.

No entanto, as cenas entre Whishaw e Gleeson “contando a história” se mostram por vezes desnecessárias dentro da narrativa e se a maioria delas tivesse sido cortada, não fariam muita diferença no filme – neste sentido, No Coração do Mar comete o mesmo erro de O Curioso Caso de Benjamin Button (2008) e suas muitas cenas entre Julia Ormond e a velha Cate Blanchett. Outro fator que curiosamente atrapalha o longa é o fato de a história ser mais voltada para a sobrevivência do que propriamente para a luta contra a baleia – esta até aparece relativamente pouco. Ou seja, o filme é um caso clássico de o público entrar no cinema esperando um tipo de história e recebendo outra.

Esse fato do filme mudar seu foco demonstra que, apesar de todas as suas qualidades visuais e do empenho do seu elenco, falta a No Coração do Mar justamente um coração, um núcleo emocional capaz de atrair o espectador. O resultado é um filme bem construído, impressionante do ponto de vista técnico e a que se assiste com facilidade. Mas é também um filme meio melodramático – o velho toque de Ron Howard volta aqui, depois do seu interessante e sóbrio trabalho em Rush: No Limite da Emoção (2013)e um pouco frio e não exatamente à altura da impressionante história que tem em mãos.

Os melhores filmes de Howard se alimentaram de poderosas rivalidades – o já mencionado Rush e o injustamente pouco visto Frost/Nixon (2008). Em No Coração do Mar a briga entre Pollard e Chase parece, a princípio, que vai cumprir essa função, mas a relação dos personagens acaba sendo subdesenvolvida e não consegue corresponder a essa promessa. Isso ajuda a explicar porque o filme acaba sendo apenas bom, quando podia ser ótimo. Mas há pelo menos um momento de brilhantismo em No Coração do Mar: após a primeira baleia ser arpoada, os pescadores se veem cobertos pelo sangue espirrado do orifício respiratório do grande cetáceo.

É o momento no qual o filme expõe a sua sensibilidade moderna: matar baleias é errado e horrível, e neste sentido a “vingança” da baleia branca serve como uma forma de justiça divina, e os personagens até se debatem sobre isso num determinado momento. É um momento não muito fiel ao espírito de Melville, que via nobreza na caça de baleias e caracteriza Moby Dick como um monstro, mas de impacto e valor. Naquela cena Howard reverte o jogo, mostrando os humanos como monstros. E assim, entre essa cena brilhante, outras boas e mais algumas meio frias e sem sentido, o filme navega num meio-termo. Mas pelo menos ali, ele alcançou a grandeza.