Os anos 70 e 80 foram de ampla liberdade criativa para os cineastas que viveram naquele período e marcaram o ciclo da chamada Nova Hollywood. Dentro da sala de cinema, o diretor fazia o que bem queria e isso era perceptível nas cenas ousadas ou fora dos padrões quando comparados com os filmes atuais. Tínhamos rompantes de experimentalismo que são cada vez mais raros hoje em dia.

No cinema policial, a estética e linguagem refletiam essa fase criativa, com tramas realistas, diálogos e narrativas teatrais e intimistas, além de cenas com uma imposição experimental marcadas por trilhas sonoras memoráveis. Nesta época, a intersecção entre o filme policial com a Nova Hollywood tinha um denominador comum: Michael Cimino. O cineasta integra um grupo de diretores que foram do céu ao inferno de Hollywood com a mesma velocidade de Usain Bolt.

 Sua postura radical e tirana no set permitiram ele ser um verdadeiro imã para atrair a vaidade e ruína nos seus trabalhos. O caos e a megalomania sempre deram à tônica nos seus filmes, ainda que seja a intensidade das suas narrativas o que mais me atrai na sua forma fílmica. O Ano do Dragão, thriller policial dirigido por ele em 85, é tão selvagem quanto energético. Seu ritmo alucinante e obsessivo só aumenta o encantamento cinéfilo por ele.

Na crítica que fiz no início do ano para o Cine Set sobre Profissão Ladrão, outro grande policial da década de 80 dirigido por outro Michael (também perfeccionista na arte de filmar), deixava claro o quanto o filme de Mann revitalizou o cinema policial através de uma roupagem contemporânea com sua atitude neo-noir moderna, porém intimista e dramática.  O Ano do Dragão de Cimino evita qualquer tipo de sobriedade com o filme do xará: é um policial que foge do caráter de igualdade de outros filmes de ação policiais do período. É amplamente ambicioso na sua narrativa, corajoso na sua pegada autoral e cru na sua mensagem ética sobre a misantropia americana.

Apesar de ser geralmente taxado de racista por grande parte das pessoas, pessoalmente acho o filme de Cimino longe disso. Pra mim é um filme que mexe com a mentalidade racista americana e a epopéia sobre a falência do sonho americano, este por sua vez, um objeto cultuado obsessivamente por Cimino na maioria dos seus filmes. A excelência do seu roteiro em parceria com Oliver Stone (que na época, foi responsável por roteirizar grandes filmes) é mergulhar na insanidade do cinema urbano de Taxi Driver para resgatar os ecos da selvageria épica dos faroestes como Rastros de Ódio, ao mostrar o capitão da polícia, um ex-combatente da guerra do Vietnã, Stanley White (Mickey Rourke, em modo motherfucker) que transforma Chinatown no campo de guerra quando enfrenta as tríades chinesas para se tornar o homem branco da lei, dono do território.

Por isso, O Ano do Dragão está longe de ser um simples policial convencional, principalmente por desconstruir a aventura policial. A muito da visão de mundo de um artista subestimado – Rourke o chamava de “homem de honra” – que construía suas narrativas, sempre de forma imprevista, explosiva e emocional. O Ano do Dragão” tende a valorizar melodrama no contexto policial, mas para atingir esta esfera, Cimino sempre perpassa antes pelo humor cínico e ácido com diversas frases de efeito do seu protagonista. A montagem do filme é carregada por um ritmo desconecto, que passeia por interpretações dotadas de ironias, sempre com um tom over da narrativa acima do normal.

Essa mistura de humor, drama e investigação policial no texto, soma-se a beleza formal de um autor fascinado pela técnica cinematográfica, por meio da composição de planos, a administração de espaços cênicos – os belos e violentos tiroteios do restaurante e da boate são fantásticos – e a câmera virtuosa de Cimino que mostra gosto para criar situações elaboradíssimas para deixar o público hipnotizado.

Também em O Ano do Dragão, Cimino traça através do seu policial Stanley, racista e misógino, o perfil da degradação social e humana da América, marcado por um sistema político cansado, que debaixo do ideal americano, revela o espírito americano destruído pela guerra do Vietnã, com a xenofobia e a radicalidade política como instrumentos das relações de poder. Como um ex-combatente, White é reprodução primitiva do ódio que assombra o lado oculto das fundações sociais americanas, alguém que já não agüenta as tratativas políticas – ele viveu isso na guerra do Vietnã – e por isso ultrapassa a linha do dever, mergulhando numa obsessão cega para executar sua missão, consumindo sua vida pessoa e profissional e das pessoas à sua volta

Neste aspecto, o filme retrata o quanto a obsessão irracional do detetive o leva a um espiral de violência que afeta a todos ao seu redor e que Cimino representa muito bem na cena em que ele entra num carro incendiado para tirar um cadáver asiático só para espancá-lo, sem qualquer propósito. Revela um homem consumido pela raiva, coberto por cinzas que simbolizam os restos da sua humanidade que se esvaeceu. Não tem como não associar o detetive a um sujeito egocêntrico e individualista, ao alterego de Cimino, um cineasta que nunca obedeceu às ordens dos estúdios e assim como o detetive é obcecado em realizar sua missão, no caso do diretor, o ápice do cinema perfeccionista.

Se o ótimo roteiro ajuda na composição de Stanley, Rourke dá a sustância dramática e humana necessária para construção de seu personagem. Mesmo White prepotente, racista e violento, o ator destaca seu personagem com valores e ética, alguém que não adere à corrupção social e que tenta impor a lei mesmo que de forma torta e reacionária. Seu lado humano aparece por meio da sua insegurança e fragilidade nos relacionamentos com a esposa e a amante. Mickey cria um dos anti-heróis mais deliciosos (e cínicos) do cinema e também um dos seus grandes desempenhos na carreira. É difícil não olhar para o personagem de Rourke e não se lembrar do capitão Nascimento de Wagner Moura de Tropa de Elite.

Por fim, O Ano do Dragão define muito bem o cinema ambíguo do seu diretor: para vencer o radicalismo do sistema, a mudança ocorre através de uma força destruidora e niilista, movida por conceitos morais confusos, afinal isso é da essência da história americana. É um conto moral sobre degradação e obsessão, da falência do sonho americano. O que está em jogo para o diretor e o seu filme é a própria destruição do sistema – da máfia e da corrupção policial- que giram em torno de Chinatown. Não é uma mensagem moral bonita para se transmitir ao público, mas o cinema de Cimino é de intensidade, de provocar sentimentos contraditórios e de chutar nossas bundas para sairmos da zona de conforto. Ao final da projeção, é bem difícil definir o tamanho do trator que passou por cima da gente depois de assisti-lo.