Em 2018, a Marvel Studios comemorou dez anos de Universo Cinematográfico coroando a trajetória de seus filmes até então. Este marco entretanto, também simbolizou a perpetuação de narrativas heróicas no cinema com uma fórmula de sucesso um tanto quanto limitada. Enquanto nomes como Thor, Capitão América e Homem de Ferro se tornavam o rosto do UCM com direito a filmes solo e importantes aparições na franquia “Vingadores”, a primeira produção com uma protagonista feminina aguardou essa década para ser concebida pelo estúdio – um feito que até mesmo a errática DC Comics conseguiu realizar antes.

A ausência do protagonismo feminino nos filmes da Marvel é primordialmente justificada por uma grande negligência: mesmo em papéis secundários, as heroínas foram limitadas a aparições pequenas e com pouca importância para a trama central. Em casos mais específicos como a Viúva Negra (Scarlett Johansson), a hiperssexualização dos quadrinhos foi transferida para os cinemas em cenas verdadeiramente vergonhosas que utilizavam uma personagem tão importante e poderosa quanto o restante do grupo (lembranças para o Gavião Arqueiro, by the way) apenas como interesse romântico ou uma distração.

Na tentativa de deixar esse estigma para trás, a Marvel buscou mudanças significativas em seus filmes, investindo conforme a resposta do público. A questão comercial também foi fator preponderante para as escolhas e, neste caso, o verdadeiro motivo para a criação de “Capitã Marvel”.

Enquanto a Marvel consolidava a franquia Vingadores, a DC correu atrás do seu próprio grupo de heróis ao resgatar a Liga da Justiça com os principais personagens de seu universo. Dentre tantos equívocos, o primeiro acerto foi justamente aquilo que faltava à Marvel: a história de uma heroína com “Mulher-Maravilha”.

Como resposta, o UCM precisava de uma protagonista para chamar de sua e nada melhor que lançar uma personagem com o nome do próprio estúdio. Além da propaganda gratuita, Carol Denvers (Brie Larson) como Capitã Marvel também é uma das personalidades mais poderosas dos quadrinhos, o que serviu perfeitamente para a figura feminina tão negligenciada no passado se tornar a salvação do universo amado pelos fãs, uma fórmula perfeita para sua aceitação e sucesso.

Com os objetivos comerciais garantidos com o lançamento do filme, é preciso questionar se estas pretensões do estúdio ficam limitadas a um discurso ou foram efetivamente inseridas no longa, ou seja, se Capitã Marvel realmente representa o público feminino.

Empoderamento e Representatividade

Aproveitando a fórmula de humor e ação do estúdio, “Capitã Marvel” entrou para o hall de filmes solo dos heróis sem surpreender. Entretanto, o diferencial em apresentar uma protagonista mulher poderia ser um fator preponderante para deixar a receita pronta de lado e consagrar o longa como uma das grandes obras do estúdio, o que, infelizmente, não aconteceu.

Mesmo assim, existem muitos elementos louváveis para o público feminino na história de Carol Denvers: ela luta em roupas condizentes com a ação que exerce longe de qualquer abordagem sexualizada; não precisa de um interesse romântico para desenvolver sua história e mostra o famoso protagonismo ao assumir escolhas por conta própria. Além disso, a produção é cheia de referências femininas em sua trilha sonora, figurinos e até mesmo interação de Carol com outras personagens. Por outro lado, “Capitã Marvel” carece de cenas que consigam animar um público órfão à espera de uma protagonista com o famoso #GirlPower.

Em muitos momentos, o longa passa a sensação de que existem iniciativas para abordar um discurso empoderador, porém são deixadas de lado e se perdem em diálogos simplistas. Este, inclusive, é um dos principais problemas do filme: não mostrar a ação para o público e sim descrever cenas.

O passado de Carol na Força Aérea fica totalmente restrito a flashbacks rápidos, época na qual toda sua interação com Mar-Vell (Annette Bening) e Maria Rambeau (Lashana Lynch) ocorreu. Essa escolha enfraquece a relação que a protagonista possui com as outras personagens, tornando os momentos supostamente emocionantes com alguma delas totalmente apagados e sem grande significado para o espectador.

Além disso, é citado que as pilotos mulheres não eram autorizadas a atuar em combate, uma questão bem simbólica para o público feminino e para a própria protagonista. Entretanto, esta fala se perde no filme dentre tantos acontecimentos da trama, uma situação que poderia ter resultado em uma cena marcante para a obra.

Neste sentido, é impossível deixar de comparar a Capitã com “Mulher-Maravilha”, já que ambas são, até então, as únicas heroínas protagonistas do gênero. Ao observar as duas produções, é possível perceber que o filme da DC busca aproveitar mais as oportunidades do roteiro para construir cenas simbólicas, as quais não fiquem apenas no discurso e sejam vistas, independentemente de sua qualidade técnica. Afinal, o objetivo aqui não é afirmar qual dos filme é melhor, mas como estes apresentam suas heroínas para o público.

Em “Mulher-Maravilha”, a vivência de Diana entre as outras amazonas a permitiu ter um pensamento naturalizado sobre a independência e poder entre mulheres. Assim, quando ela se encontra em um mundo onde homens vão para a guerra, suas atitudes não mudam. Como o público vê esta relação dela com outras guerreiras, compreende melhor a protagonista e suas motivações, por mais que soem caricatas devido a mudança de contexto.

Realizando uma comparação direta entre roteiros, tanto Diana quanto Carol querem acabar com uma guerra e agem sem a permissão de personagens masculinos para isto. Ambas são frequentemente questionadas sobre o domínio de seus poderes com adversários homens que as julgam incapazes de derrotá-los. Nada muito além da tradicional jornada do herói. Visualmente, estas semelhanças também rendem cenas correlatas, mas com grande diferença nas abordagens e influência na percepção do público.

Em “Mulher-Maravilha” vemos Diana num front de guerra, uma mulher enfrentando sozinha várias bombas, tiros e explosões a sua volta, o que se tornou imediatamente uma das cenas mais simbólicas do filme. De forma parecida, Carol Denvers detona mísseis sozinha no espaço, protegendo a Terra e seus habitantes. A grande diferença entre esses momentos é o mise-en-scène de cada um em conformidade com a carga dramática pretendida.

No filme da DC, as cenas de Diana são divididas com olhares de descrença das pessoas presentes, inclusive dos homens que a acompanhavam, enquanto no longa da Marvel, a cena ocorre em meio a um vazio e é presenciada apenas por Ronan (Lee Pace) e um assistente.

Ambos são momentos poderosos e significativos, porém, a forma como vemos a ação em “Mulher-Maravilha” cria maior sustentação para o discurso presente no filme, se apoderando dele e o utilizando a favor de sua personagem – uma constante diferença entres os dois longas.

A falta deste empoderamento integral de “Capitã Marvel” em nada atrapalha o estabelecimento de sua personagem. Além de dar animar os fãs para uma continuação, o filme também apresenta cenas boas o suficiente para irritar grupos contrários à protagonista. Mesmo podendo ir além em suas significações, a produção consegue dar seu recado pela voz da própria personagem-título: “eu não preciso provar nada para ninguém”

O Futuro é Feminino?

Esta força feminina representada pelo novo filme da Marvel se une à uma grande fase de renovação no estúdio: heróis antigos se despedem dando espaço para novos rostos. Dentre os novatos, um em particular vai de encontro com a proposta de maior engajamento social: o “Pantera Negra”. Toda a condução da história de T’Challa (Chadwick Boseman) e sua representatividade negra renderam feitos memoráveis para o estúdio, marcando o primeiro filme com um herói negro protagonista.

Além disso, “Pantera Negra” e “Capitã Marvel” dividem outro fato semelhante: ambos foram alvos de campanhas de boicote por grupos na internet. Tanto o sucesso de Pantera entre o público e crítica quanto o desempenho positivo apresentado por Capitã em sua estreia provam que as ameaças ficaram somente nas palavras. Motivos suficientes para que este engajamento social e busca por representatividade seja uma constante na Marvel. O estúdio inclusive já cogita qual será seu próximo passo ao debater a possibilidade de um herói abertamente LGBT nos cinemas.

Dentre as heroínas, nomes como “Fênix Negra” e “Viúva Negra” passarão a possuir títulos próprios nos cinemas em breve, ambas já conhecidas pelo público por outros filmes. Assim, é possível que o mesmo aconteça com tantas outras personagens secundárias nas franquias já estabelecidas, ainda que não cheguem a protagonizar seus próprios filmes é possível esperar aparições maiores das seguintes personagens:

· Capitã Marvel – “Vingadores: Ultimato” e em sua franquia solo.

· Shuri – “Pantera Negra”

· Viúva Negra – filme solo e franquia Vingadores

· Nakia e Okoye – “Pantera Negra”

· Jean Grey/Fênix Negra – filme solo

· Gamora e Vespa – respectivamente: “Guardiões da Galáxia” e “Homem-Formiga”

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