Thrillers sobre crimes perfeitos não são novidade. Tampouco aqueles que recriam, com fascínio, os improváveis, quase heróicos, feitos de esperteza e dissimulação dos chamados malandros profissionais. Martin Scorsese é um apaixonado por esse tipo de material. Também me vêm a mente filmes como “Onze Homens e um Segredo”, “O Plano Perfeito” e até “Tudo pelo Poder”, obras cuja premissa é manter o espectador no mesmo nível de desconfiança e antecipação em que se batem seus personagens. “O Homem das Mil Faces”, do espanhol Alberto Rodríguez (que já havia exercitado esse ceticismo no estupendo Pecados Antigos, Longas Sombras, de 2014) vem se juntar e reclamar um alto posto nessa companhia.

Ágil, elegante e de uma precisão cirúrgica na narrativa, o filme recria o episódio do “desaparecimento” de Luís Roldán, ministro da Guarda Civil espanhola que foi apanhado em um escândalo de corrupção, no início da década de 1990. Com a ajuda do ex-agente secreto Francisco “Paco” Paesa (Eduard Fernández, num trabalho fantástico) e seu associado Jesús Camoes (José Coronado), Roldán conseguiu driblar os serviços de inteligência espanhóis durante anos, em lances cada vez mais bizarros, até retornar ao país para ser processado em condições favoráveis. Em noticiários da época – deliciosos, aliás –, Roldán aparece quase como um personagem folclórico: ele já havia sido visto em dezesseis países, em quatro continentes diferentes; ele havia se associado a uma organização paramilitar que protege criminosos internacionais; ele já teria até sido morto por desafetos políticos. Roldán era “o homem das mil faces”, cujos rastros apareciam nos lugares e circunstâncias mais improváveis, sem nunca ser capturado. Ao iluminar esse caso esdrúxulo e fascinante a um só tempo, Rodríguez descobre o verdadeiro artífice por trás das peripécias do político: Paesa, o brilhante e ressentido ex-agente, tornado um pária pelos altos escalões da inteligência espanhola, mas urdindo silenciosamente o seu retorno usando o fugitivo como trunfo.

É uma história densa e intrincada, como em todos os planos mirabolantes do cinema, mas esclarecer os fatos não é a maior preocupação de Rodríguez. O crime de Roldán, aliás, mal é mencionado, servindo apenas para colocar em perspectiva os riscos crescentes dos envolvidos. “O Homem das Mil Faces” se ocupa muito mais em observar, fascinado, os lances do antigo espião que, sempre imperturbável, parece estar dois passos à frente de cada desdobramento, por mais volátil. É um trabalho superlativo de incisividade e sutileza de Fernández (mais familiar ao Brasil por suas participações em A Pele que Habito, de Pedro Almodóvar, e Biutiful, de Alejandro Iñarritú), que faz revelar com clareza os momentos de resolução, de relaxamento e de angústia do protagonista, sem nunca mover mais do que uma nesga dos lábios. Com os demais nomes do elenco ajustados à perfeição às idiossincrasias de seus personagens (do tenso e pusilânime Carlos Santos, como Roldán, a Coronado como Camoes, todo charme fútil, passando pela firme e elegante Nieves [Marta Etura], esposa de Roldán, e o patético testa-de-ferro alcoólatra vivido por Enric Benavent), “O Homem das Mil Faces” é mais uma combinação vitoriosa do diretor, que também assina o roteiro, em parceria com Rafael Cobos.

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Mais do que um pendant espanhol de “Onze Homens e um Segredo”, porém, “O Homem das Mil Faces” continua a investigação de Rodríguez sobre os descaminhos da Espanha na redemocratização. Com o mesmo gume afiado de “Pecados Antigos, Longas Sombras”, que se detinha sobre a hipocrisia, o puritanismo e a violência dos pequenos povoados nos primeiros anos pós-Franco, Homem continua a denunciar as imposturas, o individualismo e o forte ranço patriarcal que ainda vicejam na sociedade daquele país. Nesses jogos de homens, valores atávicos como ostentação de posses e vontade de dominação são mais fortes que amizade, confiança e lealdade, para não falar em realização amorosa. Os protagonistas de Rodríguez são homens solitários, cujas “brincadeiras” vêm produzindo episódios grotescos, como a caçada ao “homem das mil faces”. Assim como Almodóvar foi – e vem sendo – o cronista emocional desse duro amadurecimento, Rodríguez dá mais um passo importante para se tornar o intérprete social dessa trajetória.

Tudo isso envolvido num pacote desvairado, febril, amoral e quase obscenamente divertido de se acompanhar. Ao lado de “Julieta”, de Almodóvar, “O Homem das Mil Faces” é o exemplar mais vigoroso do cinema espanhol do ano passado, e a prova de que o idioma de Cervantes, graças também à produção superlativa do México e de outros países da América do Sul, é o mais atraente e recompensador do cinema hoje. Assista aos primeiros cinco minutos – e tente não se entregar ao sensacional turbilhão que vem em seguida.