Imagine um mundo sem celulares. Um mundo sem internet móvel. Um mundo em que ter um computador pessoal é um luxo. Em que baixar um filme seria impensável, uma vez que o download de uma única música era tarefa para dias. Redes sociais populares? Esqueça. No máximo, você poderia conhecer algumas pessoas em fóruns. O Google é relativamente recente. Esse foi o mundo em que Sarah Jacobson fez seus filmes alternativos feministas.

Pontuar esse cenário tecnológico é relevante para falarmos sobre a breve filmografia de Jacobson. O motivo: suas obras dialogaram, nos anos 1990, com um público jovem, o equivalente à garotada que se inicia no feminismo graças a textões de Facebook, discussões em páginas regadas de memes, compartilhamento de livros digitais, criação de eventos em mídias sociais e outras atividades na web. Mas as meninas de 20 anos atrás não tinham nada disso. Elas repercutiam seus feminismos em mídias como zines impressos e filmes como os de Jacobson, e estes últimos conseguiram tratar dos anseios e reflexões das jovens mulheres da época ao ponto da diretora ganhar o status de cult.

Nascida em Connecticut em 1971, Sarah Jacobson estudou com o diretor underground George Kuchar no San Francisco Art Institute. A partir dos 20 anos, passou a dirigir curtas de ficção e documentários. Ainda que com produções de baixíssimo orçamento, ela chamou atenção, exibindo filmes em eventos como o Sundance Film Festival, New York Underground Film Festival e San Francisco Film Festival, sendo destaque também em publicações voltadas ao cinema independente norte-americano. Dentre os críticos que destacaram o valor da obra de Jacobson, estão figuras como Roger Ebert e Amy Taubin.

FAZENDO NA MARRA

Quando falamos do cinema de Sarah Jacobson, não estamos falando apenas de filmes “jovens”. Ainda que com sérias restrições orçamentárias, ela trouxe algo que até hoje é visto como novidade no cinema: representação e representatividade, personagens femininas multifacetadas, temas como construção de identidade própria, prazer feminino, estupro, consentimento e pautas de dentro e fora da Sétima Arte. Tudo isso regado à pegada da terceira onda do feminismo e, mais especificamente, ao movimento Riot Grrrl, com o qual seu cinema sempre teve grande identificação.

Ainda é um tanto confuso o mapeamento (pelo menos online) de sua filmografia, mas podemos tomar como exemplo um de seus primeiros curtas, o autobiográfico “Road Movie or What I Learned in a Buick Station Wagon” (1991). A personagem principal descreve sua “fuga” para Nova York após encarar as dificuldades de produção de um filme e as reações a ele por seus professores e colegas. O ritmo é dinâmico na montagem e mesmo no predominante off, mostrando como a criatividade de Jacobson já conseguia, desde então, driblar a falta de dinheiro. Em apenas 10 minutos, as discussões que perpassam o filme também pontuam o olhar feminino e como a sociedade encara as mulheres, ainda que questões de gênero não pareçam, a princípio, estarem na superfície do roteiro.

As pitadas de humor ácido que já estavam presentes em “Road Movie…” encontram o terreno perfeito em outro filme: “I Was a Teenage Serial Killer” (1993). Sem dúvida, é o curta de maior sucesso de Jacobson, com direito a exibições lotadas e buzz da imprensa na época. Ela também se tornou queridinha de figuras associadas ao Riot Grrrl, como Kim Gordon e Kathleen Hanna. O curta alavancou Jacobson ao status de “rainha do filme underground” no início da década de 1990 graças a história de Mary (Kristin Calabrese), uma jovem de 19 anos que, cansada do sexismo de seus parceiros, resolve assassiná-los. A precariedade na produção é gritante, especialmente na captação de som, mas a trama, divertidíssima, prende o espectador.

Se pensarmos no contexto de que o filme é do mesmo ano que “Philadelphia” (Jonathan Demme, 1993), que retratava um casal de homossexuais que sequer podia dar um selinho, o curta de Jacobson é ousado: temos, por exemplo, uma cena em que um homem tira a camisinha sem a protagonista ver durante o coito – e é assassinado por isso enquanto os gritos de raiva e prazer dela se misturam. Essa cena, aliás, é sintomática da visão feminista de Jacobson: Mary, por cima do parceiro, ainda assim é subjugada ao desejo dele, mas vinga-se e – porque simbolismos fálicos absurdos e cinema underground andam de mãos dadas – finaliza o assassinato com chave de ouro, engasgando o homem com uma banana.

O trecho mais impactante de “I Was a Teenage Serial Killer”, no entanto, abre mão de grandes recursos estilísticos e foca no diálogo, mostrando que Jacobson também tinha talento para guiar verbalmente a trama quando necessário. Nessa cena, Mary encontra um homem que tenta doutrina-la, ainda que com palavras aparentemente mais dóceis que seus parceiros anteriores. Ao perceber a função de dominação daquela simpatia, ela se revolta e está pronta para matar, mas hesita. Tem-se aí um belo monólogo, no qual a personagem expressa que não assassinará mais homens, e sim, que fará algo ainda pior: repetirá a todos a sua história, não importa o quanto seja criticada ou calada. A metáfora engloba as próprias reflexões dentro do feminismo: como lidar com o mundo após tomar consciência das limitações que ele impõe a um sexo? Pela raiva ou pela resistência?

RUMO AO LONGA…

Com uma repercussão tão positiva para um curta no budget, o próximo passo de Jacobson seria o projeto de um longa: “Mary Jane’s not a virgin anymore” (1998). O filme, elogiado no Sundance Film Festival, foi considerado um retrato fiel da juventude da época.  Como o próprio título entrega, acompanhamos a história de Jane (Lisa Gerstein), uma jovem que trabalha num cinema com amigos, e que tenta amadurecer e entender melhor a própria sexualidade após perder a virgindade. Temas do universo da mulher até hoje vistos como tabu por parte da sociedade desfilam com naturalidade pela comédia dramática de Jacobson: o mito da virgindade, masturbação, orgasmo feminino, bissexualidade, dentre outros.

A pouca idade de Jacobson na época da produção não impediu um olhar aguçado sobre essas questões. De maneira cômica, mas também crítica, ela abre o longa com o que parece ser uma romântica primeira vez. A idealização do rompimento do hímen, no entanto, ganha ares cada vez mais kitsch, até que o espectador é apresentado à realidade de Jane: um parceiro descuidado, dor, confusão e pouco ou nenhum prazer. A cena é, de certa forma, desprovida de sexualização, ainda que o ato sexual esteja presente, ressignificando a ação para abarcar não um olhar (masculino) para o qual o prazer é garantido, e sim o ponto de vista da personagem (feminina), que apenas começou a tatear o entendimento de seu próprio prazer.

Grosso modo, “Mary Jane’s not a virgin anymore” tem a cara do cinema independente jovem dos anos 1990: os personagens todos possuem, em maior ou menor grau, uma faceta um tanto marginal; os diálogos têm uma pegada dinâmica e sarcástica, como bem marcaram os filmes de um Kevin Smith em começo de carreira, mais notadamente “O Balconista” (Clerks, 1994); há também uma quebra natural de expectativas graças ao perfil contestador de roteiro e direção – Mary Jane, por exemplo, é secretamente cobiçada pelo bad boy do grupo de amigos, com quem antagoniza várias discussões, sem que essa relação de “amor e ódio” se configure como “ritual de acasalamento”. Em “Mary Jane’s not a virgin anymore”, masculinidade tóxica é apenas masculinidade tóxica, e não charme.

… E DE VOLTA À REALIDADE

Independente do sucesso de crítica, Jacobson jamais migrou para um cinema mais mainstream. Ela continuou produzindo curtas e se aventurou por videoclipes. O cinema de não-ficção também lhe cativou, sendo o mais conhecido talvez o curta-documentário sobre os bastidores do cult punk “Ladies and Gentlemen, The Fabulous Stains” (Lou Adler, 1982), intitulado “The Fabulous Stains: Behind the Movie” (1999).

Dos filmes lançados nos anos 2000, destacam-se os documentários de imagem de arquivo “Bra Shopping” (2002) e “High School Reunion” (2003), ambos curtas. Em “Bra Shopping” (2002), Jacobson registra, de maneira provocativa e bem-humorada, a compra de um então novo e revolucionário Wonder Bra (o primeiro dos sutiãs “mágicos” que “levantam tudo”, vocês sabem…). Já em “High School Reunion” (2003), a diretora mostra o encontro de egressos de sua escola em Minessota, um ano após lançar “Mary Jane…”, e entrevista seus ex-colegas.

Um câncer no cólo do útero abreviou a carreira de Jacobson. Após a morte prematura da diretora aos 32 anos, foi criado o Sarah Jacobson Film Grant, iniciativa de bolsas para mulheres, trans ou pessoas de gênero fluido cujos projetos tenham características de seu cinema: estética underground, baixo orçamento e forte crítica social. Justamente por causa dessas características, rever seus filmes hoje permanece uma experiência extremamente atual para as jovens mulheres de 2018.