Se você gosta de cinema e o acompanha, já deve ter ouvido falar de David Griffith e seu aclamado O Nascimento de uma Nação. O diretor é popularmente conhecido por ser o pai do cinema americano moderno e dar os passos iniciais para a narrativa cinematográfica como a conhecemos. Sua obra tornou-se um marco para o cinema, não apenas pela ousadia de trazer um longa-metragem de mais de 120 minutos com uma narrativa e detalhes técnicos inovadores para a época, mas também por sua visão extremamente racista. Reflexo de um país segmentado racialmente e um diretor sulista. Cem anos depois, Nate Parker resolve dar voz aos negros e homenagear Griffith batizando seu primeiro filme de O Nascimento de Uma Nação.

Antes de começarmos a falar do filme, é preciso lembrar que não se trata de um remake. Estamos falando de uma obra nova, totalmente diferente. Com ideias e conceitos que divergem do filme de Griffith. As semelhanças constam apenas no título, em nada mais. Parker assume a direção, o roteiro e atua como protagonista, realmente levando a frente a obra e carregando a alcunha de sua.

Baseado em fatos reais, o filme traz a história de Nat Turner (Nate Parker), um escravo que viveu na Virgínia, Estados Unidos, no início do século XIX, que sabia ler e pregava a Bíblia outros escravos, obrigado pelo seu dono. Turner se revoltou com o que viu em suas andanças evangelísticas e liderou uma rebelião de escravos que resultou na morte de negros e brancos, além de outras medidas racistas no país, como a perca do direito de votar, estudar e porte de armas.

Parker leva para as telas uma discussão ainda em voga em nossos dias. Embora esquecido e inexistente para alguns, o preconceito ainda é latente em uma sociedade que busca desconstrução, mas diferencia o tratamento e julga o conhecimento pelo tom da pele, ou ainda em que negros acham superestimado ter datas em que se revigora a memória e a luta de um povo negligenciado no país. Numa época em que vimos o primeiro presidente norte-americano negro terminar seu segundo mandato e mesmo assim durante os oito anos em que esteve liderando a nação da liberdade, os casos de negligência e violência policial contra negros só aumentaram, Parker traz a lembrança de um herói esquecido.

Turner já nasce predestinado a libertar o seu povo. O filme denota uma áurea de herói bíblico ao personagem. Ele começa sendo abençoado em um ritual nativo e encarregando-se de possuir o espírito de seus ancestrais, se diferencia dos outros escravos por aprender a ler a Bíblia – aqui mais uma vez a crueldade racial se manifesta, agindo passivamente diante de todas as situações, mas após o sinal vindo de cima ou chegar a uma situação limítrofe, finalmente, assume o seu posto como libertador. Se você conhece a Bíblia ou a jornada do herói, deve estas associando essas atitudes a alguns personagens épicos.

Interessante observar sobre o prisma religioso é que o filme se calca para delinear sua estrutura. Turner é visto e tratado de forma diferente na fazenda em que trabalha por saber ler o livro religioso mais respeitado no mundo. Inclusive, é utilizando suas passagens que a personagem demonstra uma força que parece oculta pelo seu olhar cabisbaixo e seus pensamentos apaixonados por Cherry (Aja Naomi King). Ao evocar lembranças, o filme suscita a importância do aspecto religioso no processo da abolição da escravidão norte-americana.

Há uma demonstração do abuso da religião quando organizada. Turner é usado por seu dono e todos os outros senhores de escravos da região para diminuir uma provável rebelião. Dentro de seu apurado histórico, o filme apresenta a catequização dos escravos não apenas pelo seu protagonista ser alfabetizado por meio da Palavra, mas por citar um paralelo entre a busca da liberdade com o direito de liberdade religiosa, uma das pedras fundamentais da construção identitária norte-americana.

O Nascimento de uma Nação dá o seu recado, no quesito luta pelos direitos raciais. Entretanto, em sua cinematografia, há varias brechas deixadas, principalmente se observarmos a inexperiência de Parker e a grande responsabilidade que ele quis carregar sobre si.  O filme não chega a ser melodramático, talvez isso seja preocupante, porque Parker como Turner procura ser reprimido, mas quando explode beira sempre a superficialidade. A narrativa só consegue emplacar aos poucos, não conseguindo convencer sobre a figura “messiânica” de Turner, que cria pouca empatia, parece esconder algo constantemente. Mesmo assim, Parker ofusca o restante do elenco do filme. Naomi King não lembra nem um pouco a força que imprime em How To Get Away With Murder e Armie Hammer, como senhor de escravo, deixa os vestígios de beleza atuar invés de sua própria capacidade de interpretação.

O roteiro, embora apresente uma narrativa concisa, enfoca em Turner e deixa muitos pontos abertos para debate, principalmente no tratamento maniqueísta dos personagens. A montagem também chega a pecar nesse ponto, devido à morosidade para a história se delinear e a tentativa, sem muito sucesso, de tentar acelerar e justificar a infância do protagonista. A fotografia cumpre seu papel, mas é bastante engessada e a trilha sonora chega a ser tensa em alguns momentos, mas nada que a torne memorável como em Selma ou 12 Anos de Escravidão, filmes recentes que também abordam a temática.

Um dos pontos fortes é a representação da violência. O quanto esta aliada à crueldade visual, ela pode se tornar palpável e incomoda. A violência é sentida e não desvirtuada. Em uma análise atual, este incomodo se justifica por ter sido real em níveis bem mais extremos e ainda ter resquícios na sociedade contemporânea. Você almeja que Turner tome alguma medida, porque você deseja fazer algo diante de tamanha desumanidade. Na atualidade, pode não ser tão implícito, mas esta violência se camufla para se manter viva, presente e constante, com outras envergaduras e nomenclaturas.

Desta maneira, enquanto proposta de reflesh memorial, O Nascimento de uma Nação registra sua marca na história cinematográfica. Mas não mais que isso.