Nascida em uma fazenda na Califórnia, Pauline Kael estudou filosofia na Universidade de Berkeley, mas abandonou a faculdade e se mudou para Nova York no início da década de 1940. Algum tempo depois, ela conheceu o poeta e escritor Lawrence Ferlinghetti em um café. Ele lhe pediu que escrevesse uma crítica de “Luzes da Ribalta”, de Charlie Chaplin. O texto, publicado em 1953, deu ao filme o apelido de “Lamas da Ribalta” e foi a primeira crítica assinada por Kael.
Suas opiniões afiadas e a percepção sagaz foram imortalizadas nas páginas da New Yorker. Ela se firmou como a mulher mais poderosa do meio, capaz de elevar e destruir um filme e lançar jovens críticos aonde quisesse.
Em 2019, Pauline Kael comemoraria 100 anos de existência. Como forma de homenagem e perpetuação de seu legado, o Festival de Filmes Internacionais de Edimburgo exibiu o documentário “What She Said: The Art of Pauline Kael” (“O que ela disse: a arte de Pauline Kael”, em tradução livre), contendo entrevistas e depoimentos de artistas e críticos influenciados por Kael, entre eles, nomes como David V. Picker, Quentin Tarantino, John Boorman, Paul Scherader e David O. Russel.
Polêmica, controversa e a mais influente crítica do século XX, o que a tornou um ícone na crítica cinematográfica?
Confira 10 marcas de Pauline Kael:
1. Estilo pessoal
A escrita de Kael foi imortalizada por tratar cada filme de forma pessoal. Ela escrevia como um espectador, sem as delongas e distanciamentos que os críticos costumam criar da produção. Diante de um filme, ela se permitia vivenciar cada emoção, desde a raiva ao prazer, da diversão ao aborrecimento. Prova disso é que suas opiniões são extremamente subjetivas, contendo piadas sujas e até mesmo comentários que escutava de outros espectadores durante as sessões.
Algo que se destaca é a confiança em suas próprias respostas e reações; isso tornava suas análises impressionistas e pessoais. Afinal, seu estilo de escrita se assemelha a recriação de um filme: ela confronta o produto original com sua experiência de espectador somada ao conhecimento histórico de arte e cinema.
2. Contramão
Para muitos amantes do cinema entre os anos 1960 e 1980, Kael foi a crítica mais empolgante de todos os tempos. Seu estilo de escrita a aproximava do público, entretanto, o que chama atenção é seu estilo incisivo e nem sempre respeitoso em relação a críticas às pessoas e às produções.
Suas análises iam contra o consenso geral, o que não a impedia de ser ácida e severa. Muitas vezes sua reação era divergente de seus colegas de profissão e até mesmo do público. Um dos casos mais populares foi a análise de “A Noviça Rebelde” que a levou a ser desligada da revista McCall’s. Sucesso de público e crítica, ela o definiu como “uma mentira de açúcar” – imagina qual seria sua opinião sobre “La La Land”.
O que impressiona é que os argumentos que ela utilizava nos textos eram tão intensos e carregados de sensações a ponto de envolver o leitor e fazê-lo ampliar sua visão sobre o filme, mesmo que este discordasse do que ela dizia.
3. Escrita com estilo de Jazz
Sua linguagem é única: os textos, frequentemente em segunda pessoa, criavam não apenas proximidade, mas também intimidade com o público, conectando-o à discussão sobre a obra. Isso, consequentemente, desenvolve a compreensão do que é visto no cinema.
Ágil e dinâmica, a melhor comparação para a escrita de Pauline Kael é ao jazz: rico em sentimentos, sensações e divertido. Em entrevista a David Edelstein, ela declarou que sua escrita era uma jornada, uma forma elevada de pensar em voz alta. Se assim for, as maiores diferenças entre ela e os críticos de cinema populares em sua época está na dinamicidade de seus pensamentos: nunca secos e nem sem graça.
4. Distanciamento dos artistas
Antes da internet, no tempo áureo da crítica e do jornalismo cultural, leitores e artistas tinham um relacionamento mais pessoal com os críticos. Eles sentiam que conheciam, por exemplo, Andrew Sarris, Rex Reed, Judith Crist, Molly Haskell e David Denby. E essa troca de figurinhas também se estendia à classe: os críticos trocavam ideias e se apoiavam, mas Kael era exceção.
Desde que sofreu represálias de Sarris por sua posição quanto a “teoria do autor”, o então editor da New Yorker, William Shawn, a proibiu de se relacionar com outros membros da classe, de citá-los diretamente em suas análises. O que fez ela se distanciar dos cavalheiros críticos. Esse distanciamento fez bem a sua escrita.
5. Sem trocas
Um dos segredos de suas críticas era não compartilhar opiniões antes de escrevê-las e elas serem publicadas.
Neste sentido, Kael era muito cuidadosa em relação as suas opiniões incisivas e as fofocas que se espalhariam a partir de uma simples troca de ideias.
6. Amor à Ironia e Ódio mortal ao Clichê
Até aqui, sabemos que Kael era incisiva e ácida. Apesar de ter uma lista de admiradores – conhecidos como paulettes -, também havia aqueles que eram intimidados por suas opiniões e, consequentemente, poderiam vir a tornar-se seus inimigos.
Mas o que provocava as análises negativas?
Pauline Kael não gostava de imitadores. Para ela, críticos e cineastas deviam levar o público a refletir, pensar de novo, a surpreender. Ela amava a ironia, mas se opunha ferozmente ao eufemismo e ao clichê.
7. Longe de Censura
Havia em Pauline Kael algo que hoje chamaríamos de ausência de censura. Isso pode causar estranhamento naqueles que se policiam em suas análises críticas contemporâneas. Seus textos se destacam pela qualidade da escrita, sem se importar com lados.
Em uma época de artigos para jornais e revistas, a crítica não se importava com a quantidade de caracteres em seus textos ou quais estúdios e figuras importantes de Hollywood iria atingir. Sua preocupação estava em colocar no texto as impressões que o filme lhe passou, independente das pessoas que estariam envolvidas no projeto.
Afinal, nem Orson Welles escapou da pena ferina de Kael.
8. Arte Vs. Entretenimento
A grande batalha de Pauline estava na divisão entre “cinema de arte” e “cinema de entretenimento”. Ela explora essa discussão no ensaio “Fantasias do Público do Cinema de Arte”, realizado a partir de uma reflexão da recepção crítica nos EUA a “Hiroshima, Meu Amor” (1959), de Alain Resnais.
Para ela, era importante que a satisfação e a leitura crítica fosse feita em todos os filmes da mesma maneira: carregado de sensibilidade e liberalismo.
9. Além do diretor
É interessante que Kael é uma das primeiras críticas a tirar da figura do diretor a importância de rei da produção cinematográfica. Ela procurava destacar outras funções que também orbitavam na criação de um filme.
Nesse contexto, um dos seus ensaios mais empolgantes, “O Homem da Cidade dos Sonhos” dedica-se a desmistificar e endossar a interpretação de Cary Grant. Ela analisa sua filmografia com o mesmo afinco e cuidado com que hoje se estuda Bergman, Kubrick ou Lynch.
Na ocasião, ela estudou os 75 filmes em que o ator participou e os classificou no ensaio da mesma maneira como se credita as produções como obra de um diretor. Havia preocupação de sua parte em democratizar a autoria, é a partir disso que flui sua polêmica mais popularizada…
10. Criando Kane
De todas as opiniões de Kael, esta deve ser a mais popular e foi, até mesmo, responsável por ‘queimar’ o seu filme junto a uma parte do público. Em “Criando Kane”, ela afirma que os créditos de autoria de “Cidadão Kane” não seriam de Welles, mas sim do roteirista, Herman Mankiewicz, que teria sido eclipsado pelo “gênio do cinema”.
Seu posicionamento foi o pontapé inicial para um intenso debate sobre o roteiro hollywoodiano e gerou uma réplica de Peter Bogdanovich, também veiculada na New Yorker.
Pauline Kael foi uma escritora vibrante com sua voz influente e original. Fundamental para o desenvolvimento da crítica cinematográfica e de uma geração de cineastas que transformaram o cinema americano, um ícone a ser eternizado e imitado.
Sejamos todos paulettes.