A década de 70 foi repleta de grandes filmes que ficaram marcados no imaginário cinéfilo. Neste quesito, o cinema americano foi responsável pelo surgimento de belos autores: Spielberg, Lucas, Scorsese, Friedkin e De Palma. Mas foi Francis Ford Coppola que se destacou, ditando o ritmo e comandando esta década indiscutivelmente. Esta fase “setentista” foi marcada por obras seminais de importância ao cinema americano como O Poderoso Chefão (1972) e sua continuação O Poderoso Chefão 2 (1974), A Conversação (1974) e Apocalipse Now (1979).

Consolidado e aclamado, Coppola poderia continuar a realizar obras mais grandiloquentes, de tons conspiratórios, políticos e épicos, mas resolveu surpreender. Preferiu seguir um caminho intimista e experimental, transformando sua arte em uma encenação cada vez mais abstrata no início da década de 80. Não é à toa que neste período, a sua filmografia é pouco lembrada e em algumas situações até subestimada. Só que nesta fase, encontramos um forte teor autoral e pessoal com a predileção por temas existenciais. O Selvagem da Motocicleta (1983) é uma obra pequena do cineasta ítalo-americano, mas é a que melhor representa cinematograficamente falando, o que ele pensava na época.

O Selvagem da MotocicletaSe você espera algo próximo do grandioso mundo da máfia da trilogia de Don Corleone ou a crítica selvagem da alienação da guerra do General Kurtz, este trabalho segue a contramão, até porque Coppola prefere dialogar com o público através de um mundo particular, relacionado a sensações, concepções de mundo e reflexões. Observa o cinema como um lugar ideal para discutir temas que na teoria são mais humanos e simples, só que na prática adquirem contornos complexos, voltados para olhares metalinguísticos. No caso do filme em questão, a imagem a ser debatida é a identidade cultural, aquela que define quem nós somos, a qual lugar pertencemos e principalmente: o que desejamos e queremos neste estranho mundo.

Matt Dillon (sim, ele é um bom ator quando bem dirigido), é Rusty James, o personagem principal. Ele lidera uma pequena gangue adolescente numa cidade industrial falida. É o que chamamos de um rebelde sem causa: gosta de brigas e é um verdadeiro desajustado. Parte do seu comportamento é uma tentativa de ser à imagem do irmão mais velho (Mickey Rourke, perfeito na sua introspecção), o lendário líder juvenil Motorcycle Boy que virou mito na cidade (o título do filme em português refere-se a ele), mas a abandonou para buscar vida na Califórnia. Anos depois, o irmão retorna totalmente diferente de antes, e tenta romper, a percepção que Rusty tinha dele, incitando-o a explorar o mundo afora.

Lembro-me da primeira vez que assisti O Selvagem da Motocicleta. Um filme estranho e poético que parecia desconectado nas suas imagens e texto, mas que exercia um grande fascínio. As revisões ao passar dos anos, evidenciaram sua essência principal: um filme anacrônico que dialoga com o cinema de várias épocas, situações e realidades. Cada frame respira um passado que nunca volta, constituído de valores de uma inocência perdida, dentro de um senso de nostalgia que mexe com nossos sentimentos mais primitivos.

O Selvagem da MotocicletaA desconexão sentida, equivale a imagem de cinema, oferecida pelo cineasta, nostálgica na sua essência – quase  passional – de valorizar o passado, o retrato de uma juventude que muda apenas na roupagem (no caso, as motos Harley Davidson, as brigas de gangue, o ar ingênuo e as vestimentas de couro apresentadas no filme) já que o seu enredo principal, os mitos da adolescência, continuam imutáveis e idênticos, seja há 50 anos ou atualmente: a falta de perspectivas, o vazio emocional, a dispersão dos valores e ideais e os desencontros entre família e sociedade. Mudaram-se apenas as estações, as imagens do estilo de vida juvenil de cada época, mas os conflitos essenciais continuam quase os mesmos.

É dentro deste panorama, que Coppola encena a juventude sob uma capa de melancolia e desencanto, uma sensação de estranheza, que não significa essencialmente um olhar niilista do seu autor sobre os fatos sociais ou políticos. Por mais que a geração mostrada no filme caminhe para um abismo moral – o início dos anos 80 foi marcado por uma geração que mantinha o conformismo e estagnamento de uma sociedade pós-guerra do Vietnã – há sempre um viés otimista. Para Coppola, mitos e lendas devem ser desconstruídos para serem ressignificados e ai sim, é a partir deste processo que provém o crescimento e amadurecimento pessoal.

Sob o prisma de uma sociedade adoecida, é que o diretor situa a trama familiar como elo de ligação para os simbolismos do filme. Rusty James representa a visão limitada, restrita a um mundo particular, um jovem acomodado na sua própria realidade que tem dificuldades de aceitar a transição entre o passado e o futuro. A vida já não é a mesma, as gangues sumiram do mapa juntamente com o romantismo porque as drogas tomaram o lugar dos ideais de rebeldia. Se Rusty deseja ser a imagem do irmão Motorcycle Boy (querido e idolatrado) este por sua vez carrega o olhar experiente, de alguém que conhece o mundo e sabe que ele é mais amplo do que imaginava. Ele é a lenda viva que deseja ser apenas um sujeito comum, sem carregar o peso a qual foi imposto a ele pela sociedade.

O Selvagem da MotocicletaNeste ponto, a contradição dos irmãos refaz duas percepções de espaço: A fixação é a comodidade e asfixia da identidade. O Movimentar-se é o pensar e agir por si só, onde a libertação é a emancipação, a descoberta de um novo mundo. Não é a toa que Motorcycle Boy recusa a liderança da turma e incentiva o irmão mais novo a descobrir seu próprio caminho ao invés de apenas seguir o seu e dos outros.

A metáfora dos peixes (o título original do filme Rumble Fish provém dele) define bem o conflito dos irmãos. Os animais encontram-se presos em um aquário, mas estão confinados separadamente porque juntos, brigariam até a morte. É semelhante à realidade dos irmãos, presos e sufocados em uma cidade conservadora (representada pelo personagem do policial no filme), sendo a violência a forma de extravasar as emoções reprimidas. O primogênito acredita que se os peixes forem soltos em um rio, ambos não brigariam já que teriam um espaço maior para explorar e conhecer. É neste quesito que Coppola atinge o auge narrativo – não apenas pelo ato final conciso e preciso – mas por transformar uma ideia simples em um contexto complexo. É um belo exemplo de trabalhar o real não no sentido de apenas compreendê-lo e sim reinventá-lo visualmente, transformando os personagens inseridos nesta realidade em signos, dotados de sentimentos. A discussão é toda enaltecida graças à simbologia.

É claro que o texto não teria esta força, se não fosse o exercício de encenação. A fotografia em preto e branco é linda, semelhante aos filmes noir, de visual expressionista que não deixa de ter sua validade dentro do roteiro – Motorcycle Boy é daltônico e por isso enxergamos o mundo desta forma. Só há dois momentos que os elementos coloridos aparecem, uma delas envolve os peixes citados acima. Coppola também utiliza sombras e fumaças o que oferece uma percepção turbulenta e enigmática que casa com a trilha sonora de Stewart Copeland (baterista do The Police) desordenada e excêntrica. São todas artimanhas técnicas executadas com esmero pelo cineasta. Rourke e Dillon se destacam como os protagonistas, que ainda conta com um ótimo elenco de apoio liderados por Nicolas Cage e a musa Diane Lane .

O Selvagem da MotocicletaSelvagem da Motocicleta é uma das obras mais interessantes de Coppola. De um diretor responsável pela revolução cinematográfica dos anos 70, para um autor experimental e intimista nos anos 80, preocupado em retratar olhares singulares da juventude. O filme pode ser resumido em uma única frase: O retrato do tempo perdido de uma geração. É repleto de simbolismos sentimentais, que mostra o vazio de uma geração sob o ponto de vista da relação de dois irmãos. Com planos lindíssimos, Coppola desenvolve uma saga existencialista, de toques anticonsumista que retrata o rompimento de uma geração com as engrenagens conservadoras da sociedade na busca de ideais e desejos. Uma obra pequena na filmografia do cineasta, mas poética e ideológica na sua essência.