Num contexto em que o humor dito popular no cinema é construído não a partir de elementos característicos a uma cultura, mas sim a partir de ideias enlatadas que geram polpudas bilheterias por repetição, o esforço de Halder Gomes ao trazer algo que, voluntária ou involuntariamente tenta ir contra essa engrenagem do sistema com a comédia “O Shaolin do Sertão” é louvável. Até faz algum sentido que o combo globalização mais país de dimensões continentais gere as padronizações que vemos nas (arrisco-me a chamar de subgênero?) comédias globais, mas dentro desse mesmo quadro, é um filão interessante e de grande potencial lucrativo o que um filme como esse faz, já que o Nordeste é, faz tempos, um criadouro de comediantes brasileiros divertidíssimos.

Dito isso, o louvor que “O Shaolin do Sertão” e seu antecessor, “Cine Holliúdy” (2012), ganham pela ousadia em tentar produzir um cinema popular e pastelão fora dos padrões estabelecidos tem gosto agridoce. O motivo: tal como o filme de 2012, o novo filme de Halder Gomes ainda não encontrou o tom exato para unir a originalidade de sua proposta e a qualidade no produto final, culminando com um filme que sim, é capaz de gerar risadas, mas que resiste em se tornar algo marcante em longo prazo.

Ironicamente, o filme conta com a parceria da Globo Filmes. Percebem-se, nesse sentido, os recursos técnicos visivelmente mais aprimorados, em especial a direção de fotografia bem cuidada (ou seja, espetacular para os padrões de comédia popular brasileira, fissuradas que são em replicar tal elemento da linguagem televisiva no cinema). A trilha sonora é também um ponto alto, ao contrário da trilha sonora instrumental gratuita e chata de “Cine Holliúdy”. Porém, no plano geral, a execução das ideias que permeiam o longa parecem mais ameaçadas que impulsionadas por tudo isso.

Na trama do longa, o protagonista Aluisio ‘Li’ (Edmilson Filho, também reaproveitado de “Cine Holliúdy”) é um cearense que sonha em ser um grande mestre de artes marciais e que tem a chance de provar suas habilidades quando o lutador de vale-tudo Toni Tora Pleura (Fábio Goulart) surge como oponente num desafio. Para vencer a luta, Aluisio é treinado pelo mestre Chinês (Marcondes Falcão).

O cinema continua, indiretamente, homenageado na obra de Hader Gomes: não por acaso, a trama de “O Shaolin do Sertão” se passa nos anos 1980, época de ouro das exibições de filmes de luta na programação da tevê aberta. Vemos ali as referências a filmes de Bruce Lee, Jean-Claude Van Damme e, claro, o “Rocky” de Sylvester Stallone, referência-mor para cenas de treinamento físico em geral.

Em alguns momentos, o encaixe entre o universo cearense da Quixadá dos anos 1980 e a disciplina distorcida das lutas chinesas replicadas no cinemão americano dá certo, gerando um humor que até reverbera por uma reflexão para além da risada imediata. Afinal, uma mistura tão inusitada faz pensar sobre como nossas identidades, gostos e afetos se formam a partir dessas curiosas tensões entre o regional e o global, ou, como bem coloca o filme, como se dá o encontro entre os altivos chineses e os baixinhos de cabeça chata do Ceará.

Em outros momentos, no entanto, há certo desgaste nesse humor de referência, que extrapola a tênue linha entre a autorreferência regional e os estereótipos batidos que, aliados a tipos mais que manjados e mal representados no humor brasileiro (o gay, a gorda, a mocinha, o bêbado), sacrifica o que poderia ser um salto de qualidade à comédia nacional em nome de risos fáceis demais.

Para citar apenas um filme recente, temos o drama “Boi Neon” (2015), que cria, em meio a sua trama de cores ultra melancólicas, momentos cômicos bem característicos do universo nordestino, seja nas situações peculiares ou colocações de algum dos personagens. No entanto, não são esses elementos em si que geram o riso, mas o encaixe deles em situações que movimentam o filme com fluidez.

É justamente isso que falta à comédia “O Shaolin do Sertão”, esse domínio maior de como o cômico empurra (ou deveria empurrar) os personagens para desenvolver a narrativa enquanto nos faz rir. Ainda que o nonsense, o pastelão e o humor puramente físico tenham lugar valioso nos filmes do gênero (de Buster Keaton a Os Trapalhões), em dados momentos a inserção não inteligente destes atrapalham mais que ajudam o filme.

Ainda que com tantos pontos irregulares, o filme de Gomes atinge em vários momentos algo de verdadeiramente cômico no universo popular de seus personagens e do público, que mesmo sendo 100% cearense, gera apelo universal a partir do riso. Grande parte dessa identificação se deve também ao trabalho do carismático Edmilson Filho como o protagonista Aluizio Li e o grande Falcão como Chinês, que geram empatia imediata mesmo quando o timing da montagem ameaça arruinar algumas de suas gags. “O Shaolin do Sertão” tenta fazer e faz bem mais que apenas apresentar personagens gritando umas com as outras na tela em planos médios, o que já o colocaria acima de boa parte das comédias sucesso de bilheteria, mesmo com os defeitos que apresenta. Podia ser melhor? Podia? Vale a conferida? Até que sim.