Apesar do crescimento do conservadorismo político, religioso e social ao redor do planeta (inclusive no Brasil), muitas séries da atualidade estão na contramão desta tendência. Figuras femininas fortes, protagonistas LGBTs e maior presença de atores negros tornaram-se frequentes na televisão e no streaming, algo impensável até 2015.

Entretanto, quando falamos sobre essas narrativas e seu desenvolvimento televisivo ainda existem padrões a serem desafiados. Um grande exemplo disto é a perpetuação de histórias ligadas à violência quando os negros são retratados.

No Brasil, este debate foi recentemente enfatizado pelo ator Lázaro Ramos ao comentar sobre sua decisão em não assistir ‘Olhos Que Condenam’, sucesso de Ava Duvernay na Netflix. O ator justifica esta decisão exatamente pela continuidade de histórias sobre o sofrimento negro sem uma perspectiva de melhoria.

Considerando este posicionamento, reunimos algumas opiniões de pessoas ligadas ao audiovisual e ao movimento negro sobre o assunto. Confira:

Contar histórias é falar de passado, presente e futuro! Lamentavelmente, grande parte do passado de alguns povos como negros, judeus e indígenas é marcado pela dor e sofrimento. Isso faz com que grande parte das histórias que o audiovisual conte a respeito dessas identidades, traga consigo essas lástimas e chagas, que devem sim ser lembradas e repassadas, para que o mal do passado não se repita no futuro e que os cidadãos do presente, que não viveram o passado, saibam em que ponto da história as coisas se encontram.

Narrativas positivistas sobre povos minoritários e historicamente subjugados, devem sim ter mais espaço e maior relevância, em minha opinião, não só para esse como para outros temas. Porém, sem deixar de coexistirem com os relatos, mesmo que dramáticos, do passado. Para que no futuro, todos saibamos sempre, de onde as coisas vêm e são!

Sim, os minutos iniciais do primeiro episódio de “Olhos que condenam” me embrulharam o estômago. Senti taquicardia e meus olhos marejaram diante de tamanha covardia e sangue frio. O que mentes ignorantes e repletas de ódio são capazes de arquitetar… Eu me indignei, mas decidi seguir. Estou assistindo “Olhos que condenam” e na sequência, quero conferir também a entrevista dos “Central Park Five” à apresentadora Oprah Winfrey.

Sim, concordo que nós negros já somos constantemente testados, injustiçados, humilhados, desrespeitados (os índices sociais estão aí para comprovar) e que seria mais construtivo retratar os nossos talentos e culturas nas produções audiovisuais, naturalmente e de igual para igual. Isso é urgente. 

No entanto, eu fico feliz com os debates, críticas e reações que a série está causando. Além disso, tem bons atores negros atuando e permite aos espectadores se indignarem com a cultura de ódio e preconceito que historicamente assombra a população negra no mundo.

Eu ainda não consegui ver a série e nem sei se conseguirei. A gente já lida com muita dor todos os dias. Toda pessoa negra consciente de suas vivências e da gravidade do racismo que sofre sabe disso.

O Atlas da Violência desse ano, e todos os documentos que possuem dados de violência, morte e pobreza no Brasil, sempre trazem o dado da população negra sendo como maioria pobre, maioria que mais morre por arma de fogo, maioria que sofre todo tipo de violência. No meio LGBT são as pessoas negras que mais morrem, somos o grupo social em maior vulnerabilidade social, segundo o Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias, homens e mulheres negras são os mais encarcerados.

Eu não tenho condição de ficar olhando mais dor e sofrimento de pessoas negras numa série. Às vezes, eu quero desligar um pouco a minha cabeça disso, ou pensar em novas narrativas pra gente, e não é com uma série dessa que isso é possível. Talvez ajude a conscientizar algumas pessoas, mas eu concordo muito quando a ativista e comunicóloga Gabriela Moura diz que esse tipo de narrativa é como se fosse uma masturbação da dor.

Eu também sou ativista, do movimento negro, lido com várias histórias, recebo denúncias, e a gente lida com várias histórias das pessoas que a gente se relaciona também, né, do nosso ciclo de amizade, vemos rapazes que têm contato direto com a violência policial, pessoas que tem o psicológico abalado por estar dentro desse contexto. A gente lida com as questões dos outros, além de eu ter que lidar com as minhas próprias questões, que eu nem gosto muito de falar sobre isso, porque eu não sei fazer espetáculo da minha dor.

Ainda não vi a série ‘Olhos que condenam’ justamente por saber o quanto esse tipo de história me afeta psicologicamente, ainda mais se tratando de um caso real. Em algum momento vou assisti-la, mas, assim como fiz com o documentário ‘13º Emenda’, preciso de tempo para digerir.

Ambas as produções são da diretora Ava Duvernay que tem feito um trabalho necessário, jogando luz a histórias que devem ser contadas por se tratarem de injustiças que não podemos mais repetir enquanto sociedade. Vale destacar que essas narrativas estão sob a ótica de uma mulher negra em um meio majoritariamente masculino e branco – como tantos outros. Estamos a anos de termos equidade e um dos caminhos para ela é escancarando o desequilíbrio da balança. Então, por mais que doa, ainda precisamos enfiar o dedo na ferida como Ava faz.

Por outro lado, gostaria que tivéssemos um leque maior de narrativas no qual outros gêneros também fossem amplamente explorados, como comédias românticas e ficção científica – este último, inclusive, tem um representante dirigido por Ava, ‘Uma dobra no tempo’.  Para isso, não tem mistério. Quanto mais diversidade atrás das câmeras, mais diverso será o que veremos nas telas.

Acho que o audiovisual negro viveu várias fases no cenário mainstream. Hoje, o resgate histórico e da construção social do (a) indivíduo (a) negro (a) é o que motiva os artistas audiovisuais. Existe a necessidade dos artistas negros contarem suas histórias e vivências, todas são narrativas muito brutais e emocionalmente cruéis, principalmente, para aqueles que estão acima dos 35 anos.

Entretanto, estamos atravessando uma fase onde os negros não precisam sentir mais a dor de ver seus pares sofrendo nas telas, uma geração millenium negra em que temos indivíduos conscientes da sua história e orgulhosos da sua cultura de origem. Esses trabalhos como a série da cineasta Ava Duvernay são feitos para incomodar os brancos e não me encontro olhando a obra sem me sentir muito afetado emocionalmente.

Ter filmes como “Pantera Negra” visivelmente feitos para serem consumidos pela população negra, colocaram em evidência a perspectiva de uma nova geração que aprendeu a olhar para o seu presente com um pouco mais positividade diante dos problemas e com menos submissão ao status quo racista e excludente.

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