É interessante pensar como até hoje o suposto “glamour” que o cinema aparenta ter é uma ferramenta eficiente na maneira como as pessoas pensam esta arte. O ofício das grandes estrelas, dos grandes cineastas, festivais internacionais, tapete vermelho. As próprias pessoas que trabalham na área, muitas vezes, alimentam essa ideia de que cinema é uma arte sofisticada, feita por pessoas idem, que viajam muito, estão sempre em ótimos hotéis, todos muito bem remunerados.

Bom, para as grandes estrelas e cineastas pode ser, mas isso é uma enorme bobagem se levarmos em consideração que estamos no terceiro mundo, América do Sul, Brasil. O único ponto de convergência é que cinema é caro de fazer, é uma condição da mídia. Mas ao contrário do que aparenta, o grosso dos profissionais que trabalha na área tem remuneração incompatível com tapetes vermelhos. Se esse texto fosse escrito no Whatsapp, mídia oficial dessa eleição, terminaria a frase anterior com vários emojis rindo com suorzinho na testa.

O modo de fazer filmes no Brasil majoritariamente é bastante simples, barato, e muito distante do luxo que as pessoas imaginam. O grosso são diárias de 12 horas, 5 a 6 dias por semana, sob condições climáticas incontornáveis, improvisos para driblar a falta de recursos, profissionais recebendo um valor abaixo do que é pago, por exemplo, na publicidade, e de modo geral essa produção nem vai possuir distribuição adequada, afinal apenas os trabalhos da Globo Filmes têm musculatura para tal.

Mesmo em tais circunstâncias, mesmo muito distantes do luxo que muita gente acredita que exista, o cinema brasileiro apresenta números extraordinários, e faz algum tempo. Já se comprovou como indústria sustentável, que gera dividendos ao governo federal.

Em 2017, de acordo com a Ancine, 158 filmes brasileiros foram lançados no circuito comercial, um recorde. Isso dá uma média superior a 13 longas estreando por mês, aproximadamente 3 filmes por fim de semana. O crescimento vem ano após ano. Em 2016 foram 142 longas lançados, em 2015 133 filmes, 2014 teve 114. 2012, por exemplo, foram 83.

De acordo com o Observatório Brasileiro do Cinema e do Audiovisual, a indústria cinematográfica no Brasil emprega diretamente cerca 100 mil profissionais, gerando R$ 25 bi ao ano. É uma participação maior do que as indústrias farmacêutica, têxtil, e da produção de eletrônicos e informática.

A Ancine estima que a partir de 2011, quando foi implementada uma norma que ficou conhecida como a Lei da TV Paga – que obrigava os canais a veicular o mínimo de 3h30 de conteúdo brasileiro semanalmente em horário nobre, sendo metade de produtoras independentes – houve um crescimento de 425% no volume de produções nacionais exibidas na televisão. Hoje em dia, é comum que alguns canais ultrapassem a quantidade mínima de horas exigida pela lei, devido ao reconhecimento em audiência que estes produtos já alcançam. Atualmente, muitos profissionais do audiovisual brasileiro trabalham mais com produção para televisão do que para cinema, por entenderem que a estabilidade é maior.

A participação de filmes brasileiros nos principais festivais internacionais nunca foi tão constante. Citando exemplos rápidos, ano passado o Brasil teve 15 títulos selecionados em Rotterdam, 12 em Berlim, 3 longas em Cannes em 2018. Aquarius na mostra competitiva de Cannes, As Boas Maneiras em Locarno, Que Horas Ela Volta?, Benzinho e Ferrugem em Sundance, O Menino e O Mundo, no Oscar. Estes últimos exemplos representam o cenário já consolidado, mas que começou a ganhar fôlego há cerca de 10 anos, quando os filmes brasileiros voltaram a ocupar lugares de destaque, em quantidade e prêmios, nos principais festivais do mundo.

Por tudo isso e analisando as propostas de governo de Jair Bolsonaro, primeiro colocado na disputa presidencial, é lógico deduzir que o setor de cultura, como um todo, vai receber menos incentivos. Ele já anunciou que é simpático à ideia de transformar o Ministério da Cultura em uma secretaria dentro do Ministério da Educação, e, segundo o colunista Ancelmo Góis, do jornal O Globo, o seu mentor econômico e futuro Ministro da Fazenda, Paulo Guedes, tem outros planos para os R$ 1,2 bi anuais que o FSA, fundo financiado pelas próprias produções brasileiras num processo de retroalimentação, movimenta.

Notícias como essa agradam a uma parte significativa do eleitorado. Gastos com segurança pública e saúde (educação não entra na prática, só no discurso) são prioritários, principalmente com a crescente insegurança nas ruas das principais cidades brasileiras, e serviços básicos de assistência médica sendo negligenciados. O problema é achar que para resolver isso se deve tirar o (pouco) dinheiro das outras áreas. Não é por falta de dinheiro nos respectivos ministérios que segurança e saúde são problemas para a sociedade, mas por falta de competência e vontade política dos envolvidos. Se transferir diretamente o dinheiro da cultura para lá, não vai mudar nada, pois nem muito dinheiro é.

O orçamento da Cultura vive de migalhas, de 0,1% de isenções aqui, 0,2% dali. Nem chega perto de representar 1% do PIB. Mas é o primeiro dinheiro a ser mexido quando políticos dizem que precisam enxugar a máquina do governo, que é importante ter austeridade em tempos difíceis. Cultura não dá votos. Para quem enxerga administração pública com olhos simplistas, cultura é um luxo desnecessário. Não entendem como dever do Estado estimular o desenvolvimento cultural de sua população. As pessoas precisam apenas se sentir seguras, e ter um bom hospital caso necessitem. A novela e o culto bastam como cultura.

Assim como aconteceu com o fim da Embrafilme na era Collor, o possível e cada vez mais provável fim da Agência Nacional do Cinema (Ancine) e do Fundo Setorial do Audiovisual (FSA) terá papel devastador na inicial indústria cinematográfica brasileira. O cinema que se profissionaliza, busca meios de evoluir, corre o risco de voltar a ser marginal, regredir a paradigmas já superados. Não por escolha, mas por imposição de uma política pública terrivelmente desinformada.

O cinema brasileiro não acabaria, mas se transformaria em outra coisa. As comédias com o Leandro Hassum, Paulo Gustavo e Larissa Manoela seriam as únicas produções nacionais com tamanho para ocupar as salas. Elas vão até crescer de tamanho, engordar os números totais de espectadores ao fim do ano, maquiando a situação real.

O espaço para outros filmes vai reduzir até minguar, até voltar a ser exclusividade de poucos endinheirados e amigo de amigos. E quando digo outros filmes quero dizer no sentido amplo, não só o cinema de autor, mas também o cinema que dialoga com o público, que consegue seus 100, 200 mil espectadores, a nova onde de terror e suspense brasileiro, a produção descentralizada de Rio e São Paulo que trouxe uma verdadeira leva de realizadores pernambucanos, mineiros, cearenses, paraibanos, os novos documentaristas e diretores de animação, os realizadores de curtas-metragens. Além da produção emergente do Amazonas, que começa a ter avanços significativos, nos curtas e longas.

Há cadeias de produção e distribuição que finalmente estão dando passos seguros no Brasil, mas uma ruptura de investimento certamente faria com que voltássemos no tempo, mais ou menos uns 50 anos, como o próprio Bolsonaro prometeu, e certamente vai se empenhar em cumprir.

Mas esse texto não é pra convencer ninguém. Faltando tão pouco para o dia da votação, não vai ser uma fala sobre a importância da continuidade da Ancine/FSA que vai fazer alguém mudar o voto, tenho consciência. Estou falando para história, estou falando pra mim mesmo daqui a alguns anos. Não vou fazer outra coisa da vida, mas essa certeza me vem porque não tenho como desistir, não tenho pra onde ir. Cinema é minha profissão, mesmo que não haja dinheiro. Acho que é a única coisa que sei fazer com alguma aptidão, me especializei para isso, afinal de contas.

A fúria vem com muita força. Mas a insensatez é cíclica. A gente vai ficar. Nossos filmes também.