Nada tenho contra a nostalgia, mas sim à estagnação.

“A melhor forma de manter viva cada memória em particular é recordando-a”, diz Ivan Izquierdo, um dos maiores nomes da pesquisa em neurologia em atividade. De fato, diversos filmes da atualidade têm se dedicado basicamente a nos fazer recordar. Remakes e sequências de franquias seguem sendo anunciados, criticados e aguardados sob um ritmo muito mais rápido do que se pode acompanhar.

Falar mal do remake de Aladdin para quem acompanhou o desenho na infância pode chegar a ser considerado ofensa pessoal. Eu mesma, fã de Mulan, sinto um apertinho no coração quando se fala em um remake live-action da animação. Mexe, sim, com os sentimentos e percepções de quem cresceu vendo animações dessas histórias, não tem como escapar. É um golpe baixíssimo e, claro, lucrativíssimo.

Aqui não vou entrar em questões que dizem respeito unicamente à lógica de mercado por trás das escolhas de grandes estúdios, o próprio Cine Set já as explicou. Mas considero importante pontuar que, sim, há empresas, principalmente no que diz respeito à mídia, cujo modelo de negócio depende, há muito tempo, de constante revisitação ao passado e um encantamento baseado na nostalgia pelos próprios produtos. Se não fosse por isso, a Nintendo e a própria Disney nem estariam de pé.

Só que essa não é, ou pelo menos não deveria ser, a regra. E é neste ponto que quero chegar. Trazer elementos do passado para produções do presente não é um problema em si, pelo contrário, cria memória e, consequentemente, cultura: pais levam os filhos para assistir aos filmes que viram quando crianças, e as crianças de hoje se divertem também… Bem,  a gente supõe que se divirtam, só vai dar para saber daqui a uns anos, quando algumas delas virarão para os pais, com receio de magoá-los para dizer que, para eles,  Aladdin é um saco.

Tudo bem, para todos os efeitos, remakes mantém memória e isso é de extrema importância. Mas a pergunta que faço é: quando, além de manter, as produções pensarão em criar memórias novas?

No mesmo artigo de Izquierdo, logo em seguida da frase que usei como abertura deste texto, diz-se que como recordar todas as memórias “nem sempre é possível, e certamente não desejável, devemos nos aprimorar na prática da arte de esquecer”. Acredito que seja necessário que se esqueça, minimamente, o passado para que se possa ter espaço para criação. Faltam produtos novos, mas também falta criatividade para fazer traduções entre passado, presente e futuro.

A “criatividade” dos estúdios tem se resumido a um constante jogo de cintura para evitar escândalos de relações públicas e apresentar mais representatividade nos filmes, o que é legítimo e valoroso, mas, sinceramente, nada que demande real esforço criativo. Já se falou da exclusão de Chang – uma vez que a Disney teria criado sua bissexualidade meio “sem querer” – do filme live-action de Mulan, boatos de uma possível escalação de Dev Patel, indiano, como Aladdin, um árabe; uma Jasmine com o mínimo de participação ativa; e, mais recentemente, uma onda de racismo nas redes sociais em resposta à escalação de uma negra, Halle Bailey, como Ariel, de A Pequena Sereia.

As narrativas, por outro lado, continuam as mesmas, se repetem ao infinito. E, apesar de também criar memória, repetição cansa: como chegamos ao ponto de ter dois remakes de Mogli em menos de dois anos?  Ainda sim, poucos conhecem a obra original, o livro The Jungle Book (1894), do indiano Rudyard Kipling, ganhador do Nobel de Literatura.

Partindo do princípio de que toda obra traduz elementos de outras obras anteriores, seja ela uma tradução fiel ao extremo ou mesmo “nova”. Elementos do passado podem e devem ser trazidos aos novos tempos não só por remakes que copiam e colas as obras originais, mas também por remakes que arriscam trazer elementos novos em uma história  já conhecida, ou elementos já conhecidos em uma história nova.

Para manter memória, as narrativas não deveriam estar paradas no tempo.

Nada impede de fazer um ‘remakinho’ literal de vez em quando; o problema é que isso tem sido um movimento estrutural e, destaco, extremamente confortável para os estúdios. O risco é zero porque mesmo que não se esforçassem minimamente para trazer representatividade, como disse antes, esses filmes ainda teriam público. Muito público. E, mais, um público cegamente apaixonado.

Para contar uma história já conhecida é preciso criatividade, e para criar é preciso esquecer alguns elementos e substituí-los pelos que, na narrativa inédita, façam sentido. Fazer remakes que pretendem lembrar as novas gerações sobre o passado deveria ser, ao mesmo tempo, recordar e esquecer da história a ser contada.

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