É fácil relegar as comédias do cinema nacional à prateleira das “bombas”. No mainstream, para cada Guel Arraes há alguma obra edificante estrelada por Leandro Hassum ou Ingrid Guimarães. Logo, um filme estrelado por nomes conhecidos da televisão e baseado em uma peça de Miguel Falabella pode ser colocado junto às pérolas de Hassum e companhia. Mas, ainda que “A Partilha” esteja longe das inspiradas desventuras de Chicó ou Lisbela, a força de seu elenco e a singeleza com que retrata as relações familiares lhe conferem um quê de obra injustiçada (mas que, justiça seja feita, tem lá seus tropeços).

Uma das peças de maior sucesso recente no teatro brasileiro, “A Partilha” foca no reencontro de quatro irmãs após a morte da mãe delas. Como o nome sugere, a herança é o principal ponto de discussão entre Selma (Glória Pires), Laurinha (Paloma Duarte), Maria Lúcia (Lília Cabral) e Regina (Andréa Beltrão).

O que torna “A Partilha” um filme merecedor de mais atenção é a forma com que as quatro personagens evoluem e se descobrem para além das convenções sociais. Neste sentido, o destaque fica para Selma. Vivida com firmeza por Glória Pires, ela vive de rotina e convenções com o marido militar. A apresentação da personagem é eficiente ao apresentar a sua vida pragmática por meio de uma montagem e um mise-èn-scène acompanhados quase que sistematicamente pela trilha sonora bem “greatest hits do quartel”. À medida em que Selma vai se redescobrindo como mulher – a despeito da aparição de um personagem masculino e descamisado para ‘auxiliar’ nesse processo -, sua relação com as irmãs também suaviza.

Outra personagem que tem uma trajetória interessante em “A Partilha” é a Laurinha de Paloma Duarte. A caçula das irmãs tem cenas carregadas de estereótipos, mas a cena em que ela finalmente abre o coração conta com uma bela entrega de Paloma, aliada a um discurso que mostra a força da união feminina e o quanto aquelas quatro mulheres poderiam ter se ajudado caso estivessem unidas.

As outras duas personagens, Regina e Maria Lúcia, também passam por jornadas de redescobrimento, mas enquanto a primeira tem subplots pouco desenvolvidos e é tratada com certa frivolidade pelo roteiro (a salvação aqui é, adivinhem, o trabalho de Beltrão), a segunda faz as pazes com o passado de forma a mostrar que há algo além do rótulo de mulher-fútil-que-prefere-morar-fora-do-Brasil. A propósito, Lília Cabral é a MVP do elenco, com tiradas impagáveis e um ótimo timing cômico – a chegada da personagem no velório da mãe, as piadas sobre o chapéu que a personagem usa e os embates com a Selma de Glória Pires são algumas das melhores coisas do filme.

Apesar desta seção do Cine Set ser chamada de “Advogado de Defesa”, há que se reconhecer que “A Partilha” tem problemas, principalmente no roteiro. As piadas sobre o caminho espiritual seguido pela filha de Selma, Simone (Fernanda Rodrigues), e os já citados comentários sobre a homossexualidade de Laurinha poderiam ser evitados. No entanto, o que mais incomoda é a personagem Bá, de Chica Xavier. Empregada que praticamente cuidou das quatro personagens principais e que esteve com a mãe delas até o fim da vida, Bá é tratada como um objeto de decoração, ignorada e exposta aos piores barracos do longa.

Ainda assim, “A Partilha” tenta pintar um retrato honesto das relações familiares e de tudo o que as cerca, principalmente na forma com que aborda o machismo do personagem de Herson Capri – como não comemorar os xingamentos que Regina finalmente despeja a ele? No fim das contas, a dramédia dirigida por Daniel Filho carrega os resquícios teatrais da obra de Miguel Falabella, mas tem o apoio de quatro grandes atrizes para fazer algo além a partir de um roteiro nem tão complexo assim. E que bom seria se todo drama familiar tivesse uma trégua ao som de “Dancin’ Days”.