Há filmes que apresentam uma intencionalidade de representação fiel da realidade, seja por seu uso da linguagem cinematográfica, trama, ou ambos. “Docinho da América” (American Honey, 2016), de Andrea Arnold, e “Branquinha” (White Girl, 2016), de Elizabeth Wood, trabalham com essa tentativa de recriação realista, e dentro da proposta, a questão racial jamais se mostra como foco, mas refletir sobre ela é uma possível rota para aprofundar nas discussões suscitadas pelas obras.
Nos dois filmes, temos mulheres jovens e pobres, cujas escolhas-chave as direcionam para uma tentativa de se deslocarem dos papeis a elas predestinados: em “Docinho da América”, a afro-descendente Star (Sasha Lane) se une a uma trupe de vendedores ambulantes, fugindo de um relacionamento abusivo e da responsabilidade de cuidar de duas crianças, filhos de sua sogra; já em “Branquinha”, Leah (Morgan Saylor) se muda para Nova York para estudar, enveredando para o tráfico de drogas por influência do namorado, Blue (Brian Marc).
Fuga, auto-realizarão e necessidade de laços com um outro são sentimentos que guiam Star e Leah e as colocam como personagens complexas. O desejo de se distanciar de uma condição de vida longe da ideal, claro, dialoga com o tal realismo, e no contexto das personagens, isso acontece na medida em que elas tentam realizar, de alguma forma, o “sonho americano” de se tornarem bem sucedidas financeiramente e alcançarem seus objetivos.
O grupo de vendedores do qual Star faz parte, por exemplo, são incentivados pela líder Krystal (Riley Keough) a adorar o momento do sucesso da venda das assinaturas de revistas e celebrar o dinheiro; ainda que por outros meios, Leah compartilha do mesmo sentimento com o grupo do qual se aproxima, o trio de traficantes liderados por Blue, que passam a vender cocaína para aumentar os lucros. Assim, as duas mulheres saem da normalidade limitada por sua condição financeira. Equivocadamente, sentem que essa transformação não virá sem conseqüências, mas estas chegam a elas, embora de maneiras diferentes.
Nesse cenário, chama a atenção os traços de inocência que as permeiam, mesmo dentro de ambientes nos quais a pobreza, a falta de segurança e de perspectivas as maltratam aos poucos. Não por acaso, as personagens acabam sofrendo grande influência das figuras masculinas que delas se aproximam, o que dialoga com a realidade de mulheres pobres que flertam ou se iniciam no crime por conta dos companheiros. Ao contrário do homem, não é imposto a elas que se tornem “duras” emocionalmente, algo explorado, por exemplo, na fase adulta do personagem Chiron em “Moonlight – sob a luz do luar” (Moonlight, 2016), de Barry Jenkins. Star e Leah então, não se obrigam a não amar, expressando a necessidade de afeição comum a qualquer ser humano, e esse é o elemento que as unem aos personagens masculinos Blue e Jake (Shia Labeouf).
É a partir desses envolvimentos que nascem as diferenciações mais gritantes entre as duas personagens. Em “Branquinha”, Blue é preso e Leah decide vender drogas para pagar por sua defesa; logo, o romance entre eles, consumado sexualmente no início do filme, é platônico em boa parte do longa; já Jake mantém-se com Star por praticamente toda a duração de “Docinho da América”, e essa proximidade descamba para uma relação emocionalmente abusiva, sendo ele próprio uma pessoa que parece sofrer de algum tipo de transtorno de personalidade, com suas variações inesperadas de humor, sucessivas mentiras e o controle que Krystal exerce sobre ele financeira e psicologicamente.
Star, a mulher pobre e negra, é escolhida para ser treinada por Jake nas vendas, tornando-se sua protegida, função essa que descobrimos já ter pertencido a outras antes dela, sucessivamente. Ele a diz o que fazer, como se comportar e mentir, seduzindo-a e dominando o jogo de proximidade e distância conforme o desejo masculino. Star sofre abusos e é inferiorizada e criticada quando apresenta atitudes impulsivas similares àquelas que Jake toma com certa frequência.
No geral, ela é subserviente, uma funcionária-engrenagem de um mecanismo maior que ela, o qual gera lucro real apenas à racista Krystal e quem quer que esteja hierarquicamente acima dela, beneficiados por uma exploração do trabalho de um grupo de jovens miseráveis. Ao final de “Docinho da América”, Star não tem mais que as ilusões e esperanças de um dia ter outra vida, tal como no início do longa. Não há ali uma noção de jornada concluída, na qual a evolução da personagem descamba para uma esperança de melhoria em sua condição.
Por outro lado, Leah, a mulher pobre, porém branca, ainda assim possui privilégios em sua jornada: o tratamento dado a ela pelo parceiro é um pouco mais respeitoso (embora Blue e Jake tenham em comum, no geral, a noção de que devem “proteger” as “frágeis” meninas), até mesmo porque ela se torna a única pessoa com quem ele tem mais contato nas visitas feitas à prisão. Sendo branca, ela transita livremente por festas cujo público pertence a camadas sócio-econômicas superiores a dela, vendendo cocaína a preços altos, mas nunca altos o suficiente para ser impedimento ao prazer do rico.
No fundo, ela pode ser vista como ousada e “empreendedora” ao tomar as rédeas da venda de drogas, mesmo que de forma confusa, para libertar o companheiro. Ainda que ela sofra abusos, por exemplo, por parte de seu chefe ou do traficante para quem Blue deve dinheiro, Leah termina sua jornada transformadora melhor que Star: ao contrário desta, ela inicia as aulas na faculdade e, ainda que o crime e a violência tenham deixado nela uma marca, há a chance de reabilitação e retorno a uma vida socialmente aceitável.
Em “Mulheres, raça e classe”, Angela Davis já apontava como a condição da mulher na sociedade não decorria apenas de seu sexo, mas da interseção deste com fatores como raça e poderio econômico, estruturas que influenciam a aceitação de grupos sociais de maneira ampla, em especial, da população negra. Partindo dessa leitura, as situações apresentadas através de Star e Leah são parecidas, mas nunca as mesmas, e por isso mesmo é interessante destacar como isso é refletido nas obras, principalmente porque as personagens tem finais bem diferentes um do outro.
Os finais de “Docinho da América” e “Branquinha” não decorrem apenas de uma escolha criativa para os roteiros, escritos pelas próprias diretoras. É fato que a população afro-descendente em países como os EUA encontram-se em situação econômica menos favorável, num reflexo histórico da escravidão, segregação racial institucionalizada e racismo cotidiano, o que também influencia no perfil da população carcerária, como bem vemos em documentários como “A 13ª. emenda” (The 13th, 2015), de Ava DuVernay, dentre outros. Logo, em um filme cuja direção tem claras pinceladas naturalistas, nada mais natural que Arnold tenha optado por dar a Star situações que dialogam com o fato de ela ser não apenas mulher, mas uma mulher negra.
Ainda em “Mulheres, raça e classe”, Davis explica que nas primeiras décadas de libertação dos escravos nos EUA, as trabalhadoras negras não raro voltavam a desempenhar atividades antes exercidas na escravidão, com a diferença de que agora recebiam salários em subempregos, especialmente o de empregada doméstica. Em “Docinho da América”, a venda das revistas feitas por Star e seus colegas tenta, pelo menos superficialmente, subverter essa divisão dentro da lógica do capitalismo. Não obstante, a suposta meritocracia grita: “quanto mais revistas vender, mais dinheiro terá; tudo só depende de sua sagacidade como vendedor!”. No entanto, como mulher negra, e isso o filme parece apontar bem em seu desfecho, o destino de Star permanece incerto.
No trecho final de “Branquinha”, a presença de Leah em sala de aula (desconsertada por suas lembranças, mas ainda assim segura naquele ambiente) reverbera ainda mais se relacionarmos tal situação ao capítulo do livro de Davis sobre a relação da mulher negra e a educação. A teórica explica que o acesso à educação foi e ainda é dificultado aos negros, seja pelo racismo que os apresenta como intelectualmente inferiores, seja pelas condições econômicas ruins que a escravidão e suas conseqüências trouxeram aos negros até hoje. Na obra, ela conta histórias de mulheres negras que reconheceram no estudo uma chave para a mudança social em termos raciais.
Travando um diálogo entre esse posicionamento e os dois filmes, observamos que não parece ser por acaso que há apenas um negro dentre o grupo de jovens presentes na sala de aula em que Leah está. A ausência do componente educacional na trama da jovem negra Star em “Docinho da América” e sua presença acolhedora, normalizada e libertadora das situações de risco na trama da jovem branca Leah em “Braquinha” permite a leitura de que, no caso desta última, o auxílio para o processo de amadurecimento e conquista de autonomia é facilitado, ao passo que o destino de Star nada mais é que potencial: ela termina o filme com o mesmo status simbólico dentro de seu grupo de desajustados.
Assim, de forma consciente ou não, Wood deu à trama de Leah uma resolução que dialoga com o fio de privilégio que a personagem, sendo caucasiana, ainda tem perante os demais membros da comunidade de negros e latinos na qual ela se instala. Ao final de “Branquinha”, Leah não paga por seus crimes e as consequências deles são nada mais que o que dita a consciência da jovem. A longa tomada que se abre a partir do olhar vazio da jovem, mostrando aos poucos outros jovens a cercando e conversando distraidamente enquanto a aula não começa, num ambiente limpo, decorado, “criativo”, é simbólico nesse sentido; comparado à incerteza de Star, banhando-se na escuridão de um lago ao final de “Docinho da América”, é sintomático como as diretoras lançaram olhares a essas pequenas, porém diferentes mulheres.