Sobre o que é Persona, do diretor Ingmar Bergman?

Tentar responder a essa pergunta é um exercício tão complexo e instigante quanto tentar definir uma pessoa. Talvez o filme seja sobre isso: sobre duas mulheres e suas personalidades, suas diferenças e semelhanças, e como aos poucos ambas se tornam uma só entidade e depois se separam novamente.

A natureza enigmática do filme fica clara logo no início, quando Bergman cria uma das mais estranhas e impactantes sequências de abertura da história do cinema. Por cerca de seis minutos e meio, vemos uma sucessão de imagens: Um projetor de cinema sendo acionado, depois a lente através da qual passa a luz do projetor. Um pênis ereto surge numa fração de segundos – momento mais tarde referenciado em Clube da Luta (1999) de David Fincher. Depois, um desenho animado se inicia. Vemos uma tela em branco. Uma aranha. Um close de uma mão sendo furada com um prego. Duas mãos segurando a cabeça de uma ovelha enquanto o sangue do animal é derramado. Homens e mulheres idosos aparecem deitados e cobertos por lençóis, como mortos. Depois vemos um garoto deitado como esses idosos. Ele se levanta e estende o braço, parecendo querer acariciar as silhuetas dos rostos das atrizes principais do filme, que aparecem na tela. E então o filme começa e somos apresentados às duas personagens do filme.

Alma (Bibi Andersson) é uma jovem enfermeira que é encarregada de tomar conta da famosa atriz Elisabet Vogler (Liv Ullmann). Elisabet estava no meio de uma apresentação teatral quando, de repente, emudeceu. Poucos dias depois, parou de falar de vez. Alma, por sua vez, fala muito: é uma moça simpática e aparentemente comum, que gosta da sua paciente artista. Para a jovem, “a arte é muito importante”. Ela também acha o olhar de Elisabet “maligno” num primeiro momento, mas admira sua força de vontade – afinal, passar a viver sem falar requer uma inegável força, na opinião da enfermeira.

A médica que administra o hospital oferece sua casa à beira-mar para a convalescença de Elisabet e, logo, a atriz e a enfermeira se mudam para lá. Com o tempo, Alma revela suas intimidades a Elisabet e começa a desenvolver um forte sentimento pela atriz. Esta, por sua vez, permanece calada… A relação entre as duas se torna cada vez mais forte e estranha, e as fronteiras entre sonho e realidade são destruídas pelo filme. Logo, as duas mulheres parecem se tornar uma só.

Isso é o que dá para se compreender pelas imagens que Bergman cria, pois Persona é absolutamente cinematográfico. Como é de praxe nos trabalhos do diretor, sua abordagem é minimalista: basicamente o filme apenas acompanha as duas atrizes principais nos cenários do hospital ou da casa. Há pelo menos outros dois personagens importantes – a administradora do hospital interpretada por Margaretha Krook, e o senhor Vogler, vivido por Gunnar Björnstrand, outro veterano dos filmes de Bergman – mas suas aparições são pontuais e rápidas. As poucas cenas em outras locações são breves, e no geral Persona se mantém claustrofóbico.

Além de manter o foco nas suas duas personagens, Bergman se abstém de seguir as convenções narrativas tradicionais em Persona. Por exemplo, em dado momento, Alma fala sozinha no seu quarto, verbalizando para o publico a sua visão sobre Elisabet. O dilema desta, porém, é exposto por Bergman através das imagens. O diretor (que também é o roteirista), nunca fornece uma explicação definitiva para o silêncio de Elisabet. Ele apenas nos dá algumas pistas: em dois momentos ela se choca vendo imagens que remetem a guerras. Na primeira vez, é a cena do monge se auto-imolando ao protestar contra a guerra do Vietnã; na segunda, ao ver uma foto de judeus sendo presos por oficiais nazistas.

Elisabet é uma artista e, se perdeu a disposição para falar devido aos dramas do mundo, então seu silêncio é o silêncio da arte, incapaz de responder aos horrores da vida ou de evitar que eles se repitam. Outro momento visual que reforça essa ideia ocorre quando Elisabet está sozinha no seu quarto no hospital, ouvindo musica, e com o tempo a luz que a ilumina se apaga, deixando-a na escuridão. O diretor de fotografia Sven Nykvist cria uma iluminação também minimalista e muito expressiva, frequentemente deixando apenas as atrizes e seus rostos iluminados – afinal, é um filme de closes – e todo o cenário ao redor na escuridão. Cortinas também são usadas com grande efeito, seja para realçar a iluminação nas cenas diurnas, ou para trazer uma atmosfera onírica para determinadas cenas.

Ficar calado frente aos males do mundo, porque não se tem nada a dizer sobre eles, é um grande subtema do filme, mas não o explica inteiramente, pois Bergman prefere se concentrar em algo menor, mais humano. Muitas vezes, nos relacionamentos humanos, há uma personalidade dominante que se impõe sobre outra mais frágil, e o diretor é adepto da ideia de que é fácil perder a si mesmo. Numa cena, Alma diz a Elisabet que poderia ser como ela, e ao final sua luta será para evitar isso. A atriz age como uma verdadeira vampira emocional, alimentando-se da juventude e das emoções da enfermeira, que aos poucos adquire traços da personalidade da outra. O momento no qual esse processo começa é representado em Persona por um efeito no meio do filme, quando este parece literalmente “se queimar” diante do espectador.

Logo as duas começam a usar roupas semelhantes: camisolas brancas, maiôs pretos. Alma muda seu penteado e se torna mais séria. Nykvist passa a iluminar os rostos de Andersson e Ullmann pela metade, deixando a outra metade na penumbra. E na cena mais famosa e assustadora do longa, uma fusão na montagem une os rostos de ambas as atrizes – o momento se torna ainda mais impactante pela facilidade com que os rostos se encaixam. Bergman, neste momento, mostra a mesma cena pelos dois pontos de vista: primeiro, mostrando o rosto de Elisabet enquanto esta ouve o monólogo de Alma, a única possível explicação que o roteiro fornece para a mudez da atriz – mesmo assim, ela não é inteiramente satisfatória. Depois, vemos a força no rosto de Alma enquanto ela repete o mesmo monólogo.

Nesta cena, não há mais dúvidas: ao adotar a força e a frieza de Elisabet, Alma se torna outra pessoa. É o que acontece na maioria dos relacionamentos humanos: quando uma pessoa é mais forte, a mais fraca se altera, se “molda” às expectativas da outra pessoa e do mundo ao seu redor. Grande parte das nossas vidas é vivida em função dos outros, e é preciso força para manter a própria individualidade. Esta é a luta de Alma no trecho final: ao gritar “Não sou Elisabet Vogler”, a personagem deixa clara sua disposição em não se tornar igual à sua atormentada paciente. Andersson, que já havia trabalhado com Bergman antes, mostra de forma excepcional a transformação da sua personagem: afetuosa e tranquila no inicio, fria e intelectualizada no final. E Ullmann, que em Persona trabalhou pela primeira vez com Bergman e depois iniciou um relacionamento com o diretor dentro e fora das câmeras, atua com seus olhos e seu rosto, um dos mais incríveis da história do cinema.

Se Alma consegue permanecer como ela mesma, isso fica a cargo de cada espectador responder. A última palavra dita por Elisabet no filme, e uma das poucas ditas por ela – “nada” – parece indicar que essa luta, no fim das contas, é inútil. Os males do mundo ainda estão por aí, as pessoas ainda desaparecerão dentro das suas neuroses, e até os relacionamentos podem contribuir para isso.

Mas claro, essa é só uma interpretação sobre Persona. O que nele é sonho? O que é realidade? O que significam aquelas imagens iniciais? Por que a imagem do menino estendendo a mão para a tela se repete no final? São muitas perguntas, por isso “Persona” permanece um enigma ainda hoje. Mesmo assim, embora sua personagem não tenha nada a dizer sobre o estado do mundo, Ingmar Bergman tinha muito a dizer sobre o ser humano. Ele investigava a alma humana, o fazia com imagens, e algumas das mais incríveis que ele concebeu estão neste filme, uma experiência ainda capaz de assombrar quem a assiste.

Nota: 10,0