ALERTA: precisa mesmo dizer que tem SPOILERS adiante?

“Vidro” tem tudo para ser o filme mais esquisito do ano. União dos universos dos personagens de “Fragmentado” e “Corpo Fechado”, o suspense de super-heróis durante os 90 minutos iniciais liga o alerta de que M. Night Shyamalan voltou ao seu pior estilo: pretensioso e sem saber qual o real objetivo da história.

Maior exemplo disso é conseguir cansar o público das diversas personas de James McAvoy, afinal, muitas delas não trazem nada novo ao que já vimos nem leva a trama para frente. Mas, posso citar também Bruce Willis apagado, toda a trama envolvendo Samuel L. Jackson demorando demais para engrenar, Sarah Paulson robótica e por aí vai.

Admito que a decepção de ver como dois filmes tão bons resultava em uma chatice interminável e sem sentido de existir se abateu em mim. O que, entretanto, Shyamalan faz na reta final de “Vidro” é fascinante. Não que eu tenha fica satisfeito plenamente – toda a ideia de mitologia dos HQs contida na trama está mal trabalhada, soando confusa diversas vezes e as cenas de ação são terrivelmente filmadas.

Por outro lado, três aspectos do final de “Vidro” merecem destaques:


Final Fora da Expectativa do Público

A regra número 1 de Hollywood é entregar aquilo que o público espera. Ele pode até se surpreender com um ou outro aspecto, mas, no geral, a ideia é não inventar muito. Dentro desta lógica, o conceito do final feliz é uma peça-chave da engrenagem do entretenimento, pois, oferece uma sensação de satisfação ao consumidor para que ele volte diversas vezes.

Mesmo quando finge arriscar, tal procedimento é feito dentro de uma margem de segurança. Vamos pegar, por exemplo, “Vingadores: Guerra Infinita”: Thanos estala o dedo e “mata” Pantera Negra, Homem-Aranha, Soldado Invernal, os Guardiões da Galáxia. Seria um final catastrófico, mas, sabemos muito bem que o futuro do Universo Marvel depende exatamente destes personagens, o que torna o impacto do momento menos chocante para o público pela certeza da reversão. O lançamento recente do trailer de “Homem-Aranha: Longe de Casa” corrobora esta sensação de bem-estar aos fãs.

Além de satisfazer o espectador, o final feliz/apotéotico também ajuda a mascarar os problemas de um filme. Não há caso mais explícito no cinema recente do que em “Bohemian Rhapsody”: de modo geral, o filme é uma bomba repleta de furos e convenientes omissões típicas de uma biografia autorizada, porém, o encerramento com a recriação perfeita da histórica apresentação no Live Aid e a execução do hino ‘We Are the Champions’ faz qualquer um esquecer tudo visto anteriormente, sacar o Spotify e tocar a playlist do Queen.

M. Night Shyamalan, entretanto, não é afeito aos finais felizes puros e simples. Já havia demonstrado isso em “O Sexto Sentido”, “A Vila” e nos próprios “Corpo Fechado” e “Fragmentado”. Em “Vidro”, porém, ele eleva isso à décima potência: matar os três protagonistas ao mesmo tempo é de uma coragem absurda!

Apesar de ser vendida a ideia de que eles conseguiram vencer, pois, o plano do Sr. Vidro (Samuel L. Jackson) tenha funcionado, o final deixa a sensação para o espectador, no mínimo, de incredulidade. Não à toa que o público da sessão em que estive ficou até o fim esperando os créditos finais. Era a esperança de que as mortes fossem revertidas e o restabelecimento do final feliz garantido. Assim que a logomarca do último estúdio aparece e nada vem, um pequeno silêncio se instalou como se todos tivessem concluído: ‘é isso, galera. O final é aquele mesmo’.

Esta crença na própria trama e nas escolhas narrativas independente do que estúdio ou público achem são dignas de aplausos para um diretor/roteirista trabalhando em Hollywood com orçamentos e expectativas altos e estrelas do porte de McAvoy, Willis e Jackson.

Coragem rara dentro de um cinema tão pouco arriscado como o atual.


Sem Continuações

Sequências ou filmes derivados são um porto seguro da indústria do cinema. Basta ver as bilheterias de 2018: quatro das cinco maiores arrecadações nas salas americanas eram de continuações – “Deadpool 2”, “Jurassic World – O Reino Ameaçado”, “Os Incríveis 2” e “Vingadores: Guerra Infinita”.

Determinadas estrelas de Hollywood encontram a saída para momentos delicados neste tipo de filme. Tom Cruise que o diga: o astro vinha de fracassos como “A Múmia” e de produções que não conseguiram o sucesso esperado (“Feito na América” e “Jack Reacher – Sem Retorno”). Nada como ter uma franquia do tamanho de “Missão Impossível” para ganhar um fôlego. Em 2020, o astro aposta em “Top Gun” para continuar seguro.

Diferente de um Tom Cruise, Shyamalan não possui uma carreira estável marcada por sucessos absolutos em sequência. Vale lembrar que entre 2006 (“A Dama na Água”) e 2013 (“Depois da Terra”) ele era uma piada dentro do mundo do cinema – o Spielberg que não deu certo, muitos disseram. Por ser um sujeito ousado e pretensioso, pode ou ser genial ou fracassar de modo retumbante. A criação de um universo de super-heróis, o Midas do cinema atual, poderia ser o porto segundo do diretor.

Shyamalan, entretanto, joga esta comodidade na lata do lixo com o final de “Vidro”. O diretor descarta dar sequência às histórias de personagens já estabelecidos na memória do público. Mesmo que o conceito de morte em HQ´s seja extremamente flexível (oi Superman!), a forma como a história é encerrada não permite tal reviravolta em uma possível, mas improvável continuação. Afinal, seria uma traição aos objetivos estabelecidos para o universo da trama do filme.

Parece pouco, mas, basta lembrar Peter Jackson com a saga de Tolkien: a consagração com “O Senhor dos Anéis” e a indiferença com “O Hobbit”.

Saber parar é um dom.


Muito Além de Apenas Cenas de Ação

Mesmo sem ser um apreciador de quadrinhos, reconheço que, por trás dos uniformes coloridos e das cenas de ação, muitas HQs possuem subtextos políticos e sociais dentro de suas histórias. “X-Men”, talvez, seja o caso mais clássico com o pano de fundo sobre as diferenças entre as pessoas e a necessidade de tolerância para evitar conflitos.

Exceção feita por “Pantera Negra”, a trilogia “O Cavaleiro das Trevas” e eventuais filmes dos “X-Men”, a transposição das HQs para os cinemas esqueceram este aspecto, concentrando toda a força nas cenas de ação repletas de efeitos visuais, grandes estrelas e bom humor. O insosso “Doutor Estranho”, talvez, seja o exemplar mais bem definido deste tipo de filme.

Fanático por quadrinhos, M. Night Shyamalan, felizmente, não permitiria isso acontecer em “Vidro”. Tal expediente, porém, acaba sendo revelado apenas no final do filme com as sequências de reviravoltas (plots twists, se você quiser americanizar, sem problemas).

David Dunn (Bruce Willis) é uma figura invisibilizada dentro da sociedade, agindo sem despertar maior atenção. A chegada de Kevin Wendell Crumb (James McAvoy), porém, coloca em evidência algo fora do comum, o que fica reforçado pela presença da polícia em peso na captura dos dois ciente do perigo. Ao longo de 90 minutos, a representante do governo americano, a doutora Ellie Staple (Sarah Paulson) tenta voltar a colocá-los dentro da caixinha, questionando se os super-poderes são mais uma crença psicológica do que necessariamente uma realidade e fato puramente científico.

Desta maneira, Shyamalan dialoga com a constante tentativa de governos autoritários de inviabilizar minorias, deixando-as isoladas em seus mundos em que se prefere construir muros a pontes de conexão. Comunidades LGBTs sabem muito bem o que é alguém dizendo desde a infância que elas não são aquilo que são ou que tudo não passa de um “problema” facilmente remediável. A intolerância causada pelo medo leva os protagonistas a serem isolados e estudados como animais de laboratórios. Tudo, claro, dentro de um envelope e discurso bonito para disfarçar as atrocidades.

O Sr. Vidro torna-se o agente transformador desta mudança. Métodos questionáveis à parte, o personagem interpretado com maestria por Samuel L. Jackson traz a crença de uma nova ordem social sem a necessidade dos heróis serem inviabilizados. Qualquer semelhança com Martin Luther King, Malcolm X, Mandela ou movimentos sociais das minorias mundo e Brasil afora não são meras coincidências, afinal, como ele mesmo diz, o que vemos nas HQs são pequenas realidades do que fora já visto no mundo real. Lamento apenas que nem “Corpo Fechado” ou “Vidro” exponha qual era, de fato, o desejo de sociedade proposto pelo Sr. Vidro algo mais bem definido, por exemplo, em Magneto de “X-Men”.

Independente disso, igual Ryan Coogler fizera em 2018, Shyamalan mostra que é possível vida inteligente no universo dos quadrinhos sim.