Trinta anos de atividades ameaçados por uma canetada: foi assim que grande parte da classe artística brasileira encarou a notícia do fim do Ministério da Cultura, decisão tomada pelo presidente interino Michel Temer, na última quinta-feira (12). Mesmo com a promessa de criação de uma Secretaria de Cultura, subordinada ao agora intitulado Ministério da Educação e Cultura (MEC), e comandada por Marcelo Calero, ex-secretário de Cultura do Rio de Janeiro, a incorporação da pasta e a perda de status do órgão ainda têm sido vistos como sinônimos de retrocesso e têm motivado manifestações por todo o país, com ocupações de prédios e abaixo-assinados.

Entre a maioria dos profissionais do audiovisual brasileiro, a notícia também tem sido recebida de forma negativa. Uma das manifestações mais simbólicas aconteceu em pleno Festival de Cannes, quando a equipe de Aquarius, novo filme do pernambucano Kleber Mendonça Filho, denunciou um golpe no Brasil com cartazes no tapete vermelho. Enquanto isso, atores e diretores como Wagner Moura, Cacá Diegues, Camila Pitanga, Anna Muylaert e Eryk Rocha se posicionaram publicamente contra a medida. Uma das poucas vozes dissonantes na área foi o cineasta Fernando Meirelles (Cidade de Deus), que, em entrevista ao jornal O Globo, declarou que a decisão não agradaria a seus colegas, mas talvez possibilitasse mais acesso à cultura a estudantes.

No Amazonas, a classe do audiovisual também não aprovou a junção das pastas e teme que a cultura acabe ficando em segundo plano nessa gestão. Representante da cadeira de Cinema e Vídeo no Conselho Municipal de Cultura, Paulo Cezar Freire vê a decisão como um retrocesso: “[É] uma ameaça gritante à nossa jovem democracia, e sem nenhuma visão de mercado. O MinC existe há 30 anos e fomenta todos os tipos de arte. A fusão com a educação atrapalha as duas pastas, que têm valor incalculável e não podem ser avaliadas como se estivéssemos no século XIV”, afirmou Freire.

Já para o realizador Aldemar Matias, diretor de El Enemigo e Parente, a decisão também tem caráter político e ideológico. “Nem sendo muito otimista é possível enxergar essa fusão de ministérios com bons olhos, como algo estratégico. Basta observar a atuação do grupo que tomou o poder – desde a prisão ilegal dos estudantes em São Paulo (com o aval do novo Ministro da Justiça) até a exoneração do diretor-presidente da EBC, também passando por cima da lei. Governos autoritários têm pavor de cultura. A arte aguça o senso crítico da população”, destacou.

E o audiovisual, como fica?

Entre polêmicas e manifestações, a questão que surge é: como o fim do ministério pode afetar o setor do audiovisual brasileiro? Afinal, graças às ações de órgãos como a Agência Nacional do Cinema (Ancine) e a Secretaria do Audiovisual (SAv), a área do audiovisual foi uma das que mais cresceu no âmbito cultural nos últimos anos. Falando apenas em termos de exibição, se, em 1992, durante o governo Collor, apenas um filme brasileiro chegou às telas de cinema (A Grande Arte, de Walter Salles), o ano de 2015 viu 128 longas nacionais chegarem às salas de exibição, segundo o balanço anual preliminar da Ancine. Além disso, as produções televisivas também ganharam mais espaço nos canais por assinatura, por conta da cota prevista pela Lei da TV Paga.

Para o diretor de A Floresta de Jonathas e Antes o Tempo Não Acabava, Sérgio Andrade, por exemplo, o planejamento do ministério foi decisivo para o crescimento do setor nesse período. “Em composição com a Ancine, [o MinC] promoveu uma revolução no audiovisual, com um sistema de fomento dos mais eficientes, que ainda pode se estruturar mais e melhor, com o aperfeiçoamento do FSA (Fundo Setorial do Audiovisual) e a regionalização de seus programas e chamadas. A SAv sempre foi insistente na valorização do cinema enquanto arte e em sua qualificação, através de editais e plataformas importantíssimas, como o edital BO (Baixo Orçamento) e a formação de plateias”, defendeu o realizador.

A política de fomento ao setor por meio de editais também foi um dos principais pontos positivos das gestões dos últimos anos, segundo Paulo Cezar Freire. “O programa Brasil de Todas as Telas, por meio do Programa de Desenvolvimento do Audiovisual, impulsionou a produção cinematográfica em todas as regiões e, principalmente, nas regiões Norte e Nordeste, fazendo com que estas entrassem no mapa do cinema brasileiro e mundial”, destacou o produtor. Aldemar Matias também cita outras iniciativas, como o Edital Carmen Santos Cinema de Mulheres e o Edital Curta Afirmativo: Protagonismo da Juventude Negra na Produção Audiovisual. “Um dos acertos do MinC foi entender a necessidade de uma produção cultural com representatividade. É um desastre que políticas públicas tão importantes sejam extinguidas sem qualquer satisfação à população”, frisou.

Robério Braga, secretário de cultura do Amazonas

O que resta é paciência?

Embora a continuidade das políticas públicas do Ministério da Cultura ainda seja uma incógnita, os realizadores acreditam que, de maneira geral, a perspectiva não é boa. “Ao virar um apêndice no MEC, toda a diversidade social que o MinC aportava e promovia poderá ser sacrificada: os museus, as casas de cultura, os festivais, os prêmios e chamadas de editais, etc., tudo que incentiva e cria oportunidades pode fenecer. Considero uma ignorância criminosa o que certas pessoas acéfalas falam do incentivo à cultura, Lei Rouanet, etc. Acho que só sentindo em suas vidas a tristeza e o abandono da cultura é que vão cair em si, se é que tem sensibilidade pra isso…”, lamentou Sérgio Andrade.

Para outros, o cenário ainda não é de todo alarmante. O titular da Secretaria de Estado da Cultura do Amazonas (SEC/AM), Robério Braga, por exemplo, acredita que ainda é muito cedo para medir o impacto da fusão das pastas. “Nesse quadro de crise, é preciso esperar para podermos ter uma opinião isenta. O órgão já funcionou como secretaria antes, e muito bem. Embora o status de ministério seja emblemático, ele não é fundamental. A redução de autonomia é preocupante sim, mas o que precisamos saber é se os programas serão mantidos”, destacou. O secretário também lembra que a atuação do MinC teve sua dose de problemas: “Há um alcance a ser questionado nas ações do ministério, não que isso justifique sua extinção. O MinC não conseguiu estender suas ações a todo o país, privilegiando frequentemente as regiões Sudeste e Nordeste. É preciso descentralizar e nacionalizar o órgão, e isso é o mais importante”, completou.

Já o Diretor de Cultura da Fundação Municipal de Cultura, Turismo e Eventos (Manauscult), Márcio Braz, espera que a área do audiovisual seja uma das menos atingidas pelas novas diretrizes. “O audiovisual hoje tem uma política mais desenvolvida, e, pelo perfil liberal do presidente interino Temer, o que se espera é que não haja impactos substanciais nessas políticas públicas. Outras áreas de diversidade cultural devem ser as mais afetadas”, sugeriu Braz.

Impacto local

Para Aldemar, há ainda a preocupação de que os impactos da incorporação das duas pastas no ministério acabem se estendendo a níveis municipais e estaduais. “Se uma gestão federal tem políticas públicas fortes para a cultura, essas ações refletem nos níveis estadual e municipal. Os editais da Ancine em parceria com as secretarias regionais são um bom exemplo. Mas se a pauta que vem de Brasília é de encolhimento da cultura, as previsões são as piores possíveis”, alertou. O diretor Sérgio Andrade concorda: “Há rumores de que essa falência do bom senso e da criatividade possa contaminar secretarias de estado e municípios, mas espero que não. Infelizmente, no Brasil, a liberdade se extingue em nome de uma austeridade fantasiosa”.

O secretário Robério Braga, por sua vez, é mais esperançoso. “A indústria cinematográfica ainda não está consolidada, mas também não poderia continuar nas mãos de poucos. O que precisamos é de uma política cultural pública e nacional, e o Estado ainda pode desempenhar seu papel nesse sentido em níveis municipais e estaduais”.

Braz também descarta que o cenário local seja impactado pela fusão das pastas. “Em Manaus, os editais da Manauscult e da SEC inauguraram uma nova relação profissional entre o produtor audiovisual e o financiamento, calcada na prestação de contas e no processo de acompanhamento do projeto, e desempenhando assim o papel de Estado fomentador por meio de políticas públicas. A relação entre esses atores deve continuar e se fortalecer gradualmente”, ressaltou.

O conselheiro de cultura Paulo Cezar, por sua vez, reforça: “As secretarias estadual e municipal também sentirão os impactos deste retrocesso. Aliás, estas secretarias e seus gestores sabem que a fusão de pastas engessa avanços. Os setores têm que agir com recursos independentes e apresentar resultados. O audiovisual faz isso há muito tempo. Não podemos rodar o filme ao contrário. É retrocesso”. Com a incerteza do futuro do novo Ministério de Educação e Cultura (MEC) pela frente, parece que o que resta é esperar – e, enquanto isso, resistir.