O gordo, bonachão e simpático, mas também encrenqueiro Michael Moore está de volta. Em seu novo filme, Moore volta a se repetir em seu propósito e, para desespero de alguns, a continuar sendo o protagonista. “E Agora Invadimos o Quê?”, de 2015, nos leva mais uma vez a acompanhar o périplo que Moore faz em países europeus para dizer aquilo que boa parte do mundo já sabe: que o capitalismo praticado em alguns países da Europa aplica um chicote “mais suave” no lombo da classe trabalhadora do que nos EUA. E essa parece ser sempre a tônica de sua crítica nos filmes. Sem descuidar de dizer que ama os EUA, Moore faz a crítica à estrutura de poder (Executivo, Legislativo e Judiciário, e mais a mídia) norte-americana comparando serviços públicos e direitos trabalhistas prestados por alguns governos de países europeus, quase sempre melhores e identificados por ele com surpresa e espanto.

Estamos diante de mais um “documentário tipo Michael Moore”, quando os fatos ditos verdadeiros – calcados na realidade – ganham contornos de sensacionalismo e muitas vezes se confundem com a ficção. Se antes esses formatos (ou gêneros) tinham definições mais específicas ou se procurava configurações mais delimitadoras, como se fosse um grande “pecado cinematográfico” a mescla deles, hoje, com o avanço tecnológico de produção e a discussão teórica dessa variação o tema é pertinente e atraente de discussão. Portanto, desde o nascimento da ideia do documentário cinematográfico a possibilidade de filmar o real obedecendo as regras da linguagem de cinema já incluía a possibilidade dessa realidade ser “reconstituída” em repetições e ajustes do “cenário”. É do conhecimento geral que Robert Flaherty, identificado como o pioneiro do documentário em longa-metragem com Nanook, o Esquimó (1922), já fazia seus “recortes” de realidade e suas ênfases em imagens que foram previamente concebidas e acentuadoras da presença de uma direção. Mas isto nos parece extremamente normal, em se tratando da elaboração de um produto que é decisivamente coletivo, como é um filme.

Abro aqui um pequeno parêntese para questionar o consagrado pioneirismo de Flaherty no gênero documentário de longa-metragem e chamar a atenção para o pioneiro do cinema na Amazônia, Silvino Santos. É com No Paiz das Amazonas, filme também concluído em 1922, que Silvino torna-se conhecido, porém antes dessa realização, fez Amazonas, o Maior Rio do Mundo em 1920, obra que se perdeu materialmente e que possivelmente retirou de Silvino a galhardia de merecer a titularidade mundial no documentário de longa duração.

Voltando ao filme de Moore, temos agora praticamente um esgotamento de suas contínuas críticas à política dos EUA, ainda que sempre bastante esclarecedoras, principalmente para aqueles brasileiros que idolatram cegamente o padrão norte-americano de vida, amplamente difundido na mídia televisiva e no cinema hollywoodiano, como se lá houvesse apenas e sempre prosperidade. Moore inicia sua peregrinação utilizando uma brincadeira: seria ele incumbido agora de “invadir” outros países em busca de ideias que pudessem ser incorporadas ao povo americano visando seu bem-estar. A palavra invasão é usada satiricamente para criticar a política externa adotada pelos EUA em relação ao mundo: são eles sempre os defensores da liberdade mundial e para isso não descartam nunca o uso da força bélica e a invasão de países que não a promovam. Ou seja, em nome de uma pseudoliberdade invadem-se países ou desestabilizam-se governos retirando a liberdade dos contrários.

Já no primeiro país a “invadir”, a Itália, assistimos a expressão de surpresa de Moore quando do depoimento de um casal de trabalhadores ao dizer que usufrui de férias remuneradas e do 13º salário. O espanto de Moore se revela forçado ao anunciar que tais benefícios não existem para os trabalhadores norte-americanos. O mesmo olhar de espanto transparece quando os empresários de uma fábrica de roupas para marcas de grife e os de uma fábrica de motos confirmam que o pagamento desses benefícios é justo e um direito dos trabalhadores, que dessa forma seus funcionários retornam das férias mais satisfeitos e produtivos. Oh! Então, os empresários italianos não são algozes dos trabalhadores, mas os americanos sim!

Continuando sua “invasão”, Moore chega a Normandia francesa e descobre que a alimentação de uma escola pública de crianças é produzida por um “chef” em sua cantina e que os alunos comem frutas, queijos e bebem água, mas jamais hambúrguer, batata frita ou Coca-Cola. Segue para a Finlândia para “descobrir” que a educação nesse país é número um, ou seja, é top no ranking mundial. Como conseguiram isso? Primeiro, os jovens alunos têm “dever de casa” reduzido, para que sobre tempo aos esportes, aos amigos, às artes e à família. Segundo, o ano escolar é institucionalmente o mais curto do mundo ocidental e as avaliações não são de múltipla escolha, mas de redação. E por aí vai em sua peregrinação aos países capitalistas “bonzinhos”: Eslovênia (para falar do ensino superior gratuito), Alemanha (do poder de organização dos trabalhadores e suas conquistas trabalhistas), Portugal (da descriminalização do uso de drogas), Noruega (das características prisionais, baseadas na reabilitação), Islândia (do empoderamento das mulheres e da capacidade política de prenderem aqueles que burlam a economia – os banqueiros), e até um país africano, a Tunísia (das clínicas públicas gratuitas de saúde feminina e de aborto). E, ao final, nós, espectadores, é que ficamos surpresos, espantados, quando Moore revela que a maior parte dessas “ideias brilhantes” não era nova ou estranha aos EUA, elas eram, sim, oriundas do próprio EUA! Nossa surpresa, no entanto, é de indignação por tal pretensão. Ao mesmo tempo em que critica procedimentos morais, comportamentais, culturais e trabalhistas dos EUA, Moore diz que a solução está apenas no “gerenciamento” dessas políticas, pois todas as “ideias revolucionárias” europeias têm, na verdade, raízes norte-americanas!

Os filmes de Michael Moore têm sempre essa pretensão. Aparentemente criticam comportamentos morais e culturais do homem norte-americano, mas, no fundo, desejam apenas que o estado capitalista de bem-estar social pudesse ser aplicado pelos governos. Já tinha sido este o mote de Tiros em Columbine, em 2002, na questão da enorme e crescente taxa de violência com uso de armas de fogo entre a população estadunidense, e em SICKO – $O$ Saúde, de 2008, sobre o sistema neoliberal de saúde e a consequente ausência de saúde pública. Se por um lado a crítica de Moore parece perder-se em seus próprios desejos de mudança da sociedade americana, para nós, brasileiros, que vivemos todas essas mazelas também por replicarmos procedimentos idênticos, fica um gostinho de ver que as denúncias são procedentes (agora publicizadas por um autêntico defensor norte-americano) e que precisamos conhecer a fundo nossa realidade para igualmente fazer a mudança acontecer. A mudança desejada por Moore para os EUA é a que ele apresenta como modelo de países europeus; a nossa, contudo, não necessariamente precisa ser assim. Há mais vida interessante e inteligente para além do capitalismo…