Muito se fala sobre a necessidade de defesa do cinema em seu formato tradicional (bandeira essa defendida abertamente no Cine Set). Esse tal formato consiste em se dirigir a uma sala escura com tela grande, projeção e som de qualidade, rodeado de estranhos que, imersos na penumbra, adentram no universo do filme em uma experiência que é subjetiva e, ao mesmo tempo, coletiva, além de ser quase ritualística para um cinéfilo.

Essa experiência, porém, esbarra em sua própria historicidade. Ver um filme hoje no cinema é uma experiência muito diferente da que os críticos da Nouvelle Vague vivenciaram entre os anos 1950-1960. Por sua vez, a experiência deles foi muito diferente da dos espectadores dos primeiros filmes dos Lumière.

O fato é: não existe, nem nunca existiu, uma única forma de ver filmes, e é sobre isso que esse texto quer falar. O ritual da sala de cinema é idealizado por todo bom cinéfilo, mas já está na hora de pararmos de diminuir a importância das formas alternativas de se colocar como espectador.

A educação pela fita

Não precisamos voltar tanto no tempo para defender a ideia desse texto. Quem começou a ser cinéfilo por volta dos anos 1990 sabe muito bem a importância que as fitas VHS tiveram em sua vida. Em tempos pré-internet, ver uma pequena nota em uma revista sobre um determinado filme era a chave para direcionar as buscas nas locadoras, o que quase sempre culminava em levar de cinco a dez fitas VHS para assistir no final de semana.

A forma de consumo do filme se torna então diferente da do cinema tradicional. Se muito, você se reunia com um grupo pequeno de pessoas, isso se não via o filme sozinho. Sua atenção poderia assim estar totalmente direcionada a ele, num processo de imersão potencialmente tão poderoso quanto o da sala de cinema. Pausar ou voltar o filme davam a esse espectador uma possibilidade de quebra nessa imersão, o que não acontece na sala, mas sinceramente, quem fazia isso nos anos 1990?

No século XXI, essa experiência se mantém similar, com a diferença que os filmes não estão mais nas fitas VHS, e sim nos nossos HDs. Filmes, aliás, que eventualmente nunca chegam nas salas de cinema brasileiras fora do eixo Rio-São Paulo. A quebra da linearidade da experiência é bem comum, pois cada vez mais vivemos a vida em constante estado de multiatenção, entre o virtual e “real”, mas muitos conseguem chavear os momentos de dividir a atenção entre filme e tela do celular, por exemplo, dando a si mesmo a dádiva do offline pela extensão de um filme legal.

O inferno são os outros

Temos ainda outras dificuldades de fruição no cinema: uma delas é a falta de formação dos espectadores, acostumados a consumir filmes como quem come um combo em um fast food: sem a mínima atenção ou reverência. Hoje vamos a uma sala de cinema e nos deparamos com as seguintes situações:

  • Pessoas que falam durante o filme, e eventualmente falam com o filme;
  • Pessoas que tiram fotos de si mesmas ou da tela para postar nas redes sociais durante o filme;
  • Pessoas que checam suas mensagens de whatsapp durante o filme;
  • Pessoas que atendem o celular durante o filme.

Quem vai a uma sala de cinema buscando imersão total tem muita dificuldade de alcançá-la, pois há uma série de fatores atrapalhando o processo. Você busca entrar no filme, mas essas situações lhe recordam o tempo todo o quanto você está fora dele. De certa maneira, os cinemas de hoje tem muito mais a cara dos Nickelodeons do início do século XX, voltados plenamente à noção de espetáculo, que dos cineclubes das primeiras vanguardas do cinema, berços da própria palavra cinéfilo, que buscavam a apreciação e reflexão sobre o filme.

O que pode levar de volta à sensação “sagrada” de ver um filme é, não raro, assisti-lo em casa. Garante-se aí uma imersão mais tranqüila por excluir os demais espectadores. Ok, isso retira o aspecto coletivo da equação, mas abre espaço para intensificar os efeitos do filme em sua mente nesse meio tempo. O VHS, o DVD, o Bluray e o filme guardadinho no seu HD fazem esse favor ao cinéfilo desde os anos 1990. Por quanto tempo mais iremos rebaixá-los nessa história e adorar apenas as salas de cinema?

Culpa no cartório

A outra dificuldade de vivenciar a plenitude do ritual de ver um filme não tem nada a ver com quem os assiste. Tem a ver com as salas de cinema atuais, confinadas aos espaços de consumo dos Shopping Centers. Para não dizer que a culpa é só da parcela mal educada dos espectadores, eis uma lista de situações que vivenciei em salas de cinema só em 2016:

  • Eu mesma tive que apagar as luzes da sala de cinema para ver “Deadpool”. Meu marido apagou as luzes da sala para vermos “Macbeth” e “O regresso”.
  • Eu e um amigo fomos convidados a entrar em uma sala de cinema antes de comprarmos os ingressos para uma reprise de “Star Wars: Episódio VII – O despertar da força” porque os funcionários falaram que o ar-condicionado não funcionava muito bem e tínhamos que ver se íamos agüentar o calor.
  • O filme travou no meio da exibição em mais de uma sessão.
  • O ar-condicionado travou no meio da sessão (o que, em Manaus, equivale a 110 minutos de sauna).
  • O equipamento de som apresentou problemas e o filme inteiro era acompanhado de um zumbido.
  • Os funcionários conversavam num tom de voz muito alto durante a sessão.
  • O som de uma sala vizinha interferia no som do filme da minha sala.

Nós, cinéfilos, adoramos defender as salas de cinema porque elas são equipadas com os aparatos que nos permitirão apreciar todos os detalhes que compõem a obra fílmica: as cores na fotografia, os detalhes do som, a fluidez do filme… mas e esse esses aparatos param de funcionar? Você vivencia uma quebra indesejada, uma situação em que o filme é destronado e você é arrancado para fora dele. E o que fazer quando os próprios funcionários das salas, que deveriam te ajudar a ter uma experiência prazerosa, são justamente os que a atrapalham?

Nesse sentido, o ambiente da casa é muito mais passível de ser controlado: você faz os ajustes em seu computador, player de mídia, televisão e mesmo ar-condicionado (ou aquecedor, se morar em uma região mais amena). Novamente, sacrifica-se a tela grande em detrimento de mais que comodidade: trata-se de aumentar as chances de se entregar totalmente ao filme, de não pensar em nada além do filme. Verdade seja dita, é também uma questão mercadológica: por que pagar por um serviço que não é prestado de maneira adequada? Pagar um ingresso de cinema não é pagar por um filme; é pagar por um filme com qualidade superior de imagem e som, num local limpo, seguro, escurinho, aconchegante…

Formação e posicionamento político

A opção por ignorar a sala de cinema tradicional perpassa também dois outros pontos: a ampliação da formação do cinéfilo e a sua atitude de resistência. Os filmes fora da programação do cinema, sejam novos ou velhos, interessam a esse cidadão para quem os filmes figuram na lista de coisas mais importantes de sua vida. O cinéfilo confere as novidades de um “Deadpool” com a mesma avidez com que se debruça sobre a filmografia de um antigo diretor que ainda não conhece, e nesse sentido, o consumo dos filmes por vias alternativas é vital.

O que seria de toda a geração atual de críticos e cinéfilos sem as telas de suas televisões e laptops? Melhor ainda: o que seria dos críticos e cinéfilos que não vivem nas regiões mais desenvolvidas, que nunca botaram os pés em uma sala de cinema de arte porque estas não existem em suas cidades, que nunca tiveram acesso a uma sala de cinema de shopping com uma programação diversificada? Não é por acaso que observamos a emergência de novas formas de consumo audiovisual como o streaming, para citar só um exemplo. Elas surgem porque as pessoas continuam dando um jeito de amar filmes. Para além do fator-novidade desses serviços, há todo um processo de formação de novos cinéfilos através desses aparatos.

Ver filmes na televisão, no laptop, no tablet, pode muito bem se configurar como um posicionamento político, de resistência mesmo. Resistência não apenas a um modelo de negócio que desvaloriza a experiência da sala de cinema, mas que também desvaloriza obras de temáticas variadas. Não vemos nos cinemas com facilidade o filme africano, o filme indiano, o filme indígena e o filme queer ou feminista. Estes nós só vemos no cineclube, numa reunião de grupo de estudos da faculdade, no torrent ou no lançamento feito eventualmente pelo próprio realizador numa plataforma como o Youtube. Ver esses filmes é também dizer: “nada contra, mas eu não estou aqui para ver apenas o cinemão industrial. Outras histórias também me interessam, e eu irei até elas”.

Uma nova memória afetiva

É inegável que hoje conseguimos criar afeição para com nossa pasta de filmes no computador, ou para com nossa lista de favoritos no Netflix. Também já conseguimos criar afeição para com as memórias de estar em casa assistindo a um filme sozinho e ele simplesmente mudar nosso modo de ver o mundo para sempre. Naquele momento, pouco importa se a tela da televisão não era tão grande quanto a do cinema, ou se você estava deitado no chão, e não sentado em uma poltrona. O filme esteve em você. Isso importa.

Essa mudança explicita novos desafios para a manutenção do cinema enquanto negócio, principalmente no que diz respeito à questão da pirataria. Apesar de já vermos registros de pessoas da própria indústria cinematográfica envolvidas no compartilhamento ilegal, ainda não se encontrou um meio termo para lidar com a atividade. Já serviços como o Netflix alardeiam números muito positivos  de acesso legal, embora seus detratores afirmem que há certo exagero neles.

Para o bem ou para o mal, já conseguimos vislumbrar o quanto temos a ganhar com essas outras formas de ver filmes. Não se trata de venerá-las em detrimento das salas de cinema, mas de integrar experiências diversas em prol da sede e amor que o cinéfilo tem por filmes, além de mostrar quais os problemas que nos impedem de ir às salas que não raro nós, cinéfilos, continuamos amando mesmo assim. A todo momento, surgem estudos sobre essas novas experiências, e um futuro não muito distante as colocará em pé de igualdade na história do cinema. É melhor os cinéfilos mais tradicionais começarem a se acostumar com isso, porque o cinema sempre foi mutante demais para se permitir ficar estanque.