O cinema perdeu Sean Connery. No último 31 de outubro de 2020, foi anunciada pela família a morte do ator, que se foi tranquilamente durante o sono. Até o momento de escrita deste texto, a causa da morte não foi informada. Micheline Roquebrune, a viúva do astro, afirmou após o falecimento que ele já vinha sofrendo de demência. Connery tinha 90 anos.

Foram 90 anos de uma vida intensa, de várias grandes atuações em muitos grandes filmes, e de uma inegável contribuição para o cinema. De minha parte, posso dizer que cresci com Sean Connery e ele foi um dos nomes que me fez despertar o amor pelo cinema. Foi uma pessoa complexa, um homem reservado que acabou virando o maior astro do mundo por um tempo, e como todo grande astro, projetava uma imagem e sensações associadas a ela. No caso de Connery, eram sensações de sedução e perigo. Nós o amávamos, mas, ao mesmo tempo, tínhamos um pouco de medo dele. E foram estas qualidades que o tornaram especial.

O homem que se tornou Bond… James Bond

Thomas Sean Connery nasceu em Fountainbridge, Edimburgo, na Escócia, em 25 de agosto de 1930. Cresceu pobre – seu pai era operário de uma fábrica e sua mãe, faxineira – e, devido às dificuldades, teve de trabalhar desde cedo. Foi entregador de leite, alistou-se na marinha, onde serviu por três anos, foi salva-vidas, poliu caixões. Sem ter muitas opções, desenvolveu o físico: Chegou a ser terceiro colocado no concurso de Mister Universo em 1950.

Foi quando a atuação entrou em sua vida: encorajado por amigos, começou no teatro. Em pouco tempo estava atuando na TV britânica e conseguindo pequenos papéis em filmes. Num deles, a produção da Disney A Lenda dos Anões Mágicos (1959), Connery foi notado por Dana Broccoli, esposa do produtor Albert R. Broccoli, que junto com seu sócio Harry Saltzman, estava à procura de um ator para viver o agente secreto James Bond no cinema, na série de adaptações para as telas dos livros de espionagem do autor Ian Fleming.

Foi uma aposta arriscada escolher um ator de 32 anos com pouca experiência para conduzir o que viria a ser uma série de filmes. Nem Fleming, inicialmente, levava muita fé no escocês bruto que escolheram para viver seu herói classudo e altamente britânico. Mas deu certo: o primeiro filme da franquia James Bond, 007 Contra o Satânico Dr. No (1962), foi um sucesso mundial e a chave para isso foi a presença de Connery.

A energia sexual do ator irradiava da tela, tornando-se marcante na década da liberação sexual. E Bond era um herói novo, uma quebra de paradigma dentro do cinema: um herói com pitadas de cara mau. Connery parecia capaz mesmo de matar alguém, e a despeito das dúvidas iniciais, conseguia convencer igualmente ao usar um terno bem cortado ou ao dizer qual safra do champanhe Dom Pérignon preferia. Em duas cenas-chave do filme, Connery demonstrou seu poder: primeiro, ao matar a sangue frio o capanga do vilão, o professor Dent (Anthony Dawson). Detetives do cinema não faziam isso. Cary Grant ou Humphrey Bogart nunca fizeram isso nos seus filmes. 

Quando o público viu o protagonista do filme matar um vilão que ele poderia ter apenas prendido, e não o odiou por isso, nasceu o herói de ação moderno. Ora, nasceu o cinema de ação moderno. E Connery fez isso funcionar: caso tivessem escolhido outro ator para Bond, um David Niven ou um Roger Moore (ambos foram cogitados e Moore mais tarde assumiu a franquia com um 007 mais leve e cômico), esse diferencial do personagem teria se perdido. Talvez não tivéssemos filmes de James Bond sendo feitos até hoje, sem isso.

Outra cena-chave foi a apresentação do herói. Na sua já lendária introdução, Connery diz “Bond… James Bond” com uma dose tão natural de desdém, que se torna inegavelmente cool. Ali ele seduziu homens e mulheres: Logo virou um lugar-comum dizer que Bond era o homem que homens queriam ser, e que as mulheres queriam ter. Bem, tê-lo podia ser bom, mas também tinha potencial para ser perigoso.

E foi o perigo que atraiu o público. Os filmes seguintes do agente 007 transformaram Connery no maior astro de cinema da época, e foram também os primeiros blockbusters mundiais. Aquele desdém se tornou bem mais perceptível quando o reservado ator passou a ser assediado constantemente por fotógrafos e fãs. Com o tempo, Connery passou a odiar de verdade o papel que o tornou famoso, e desde cedo começou a tentar se desvencilhar de Bond para provar que era bom ator. Alfred Hitchcock o escalou no drama psicológico Marnie, Confissões de Uma Ladra (1964) ao lado de Tippi Hedren, onde aquelas características perigosas vieram à tona sem os disfarces dos filmes de Bond. Mas foi Sidney Lumet quem acreditou primeiro em Connery como ator, escalando-o para o poderoso drama A Colina dos Homens Perdidos (1965), a primeira grande atuação dramática do astro. Connery e Lumet se deram tão bem que voltariam a trabalhar juntos mais vezes.

A despedida, e retorno a Bond… E os novos rumos da carreira e da vida pessoal

Durante as filmagens no Japão do seu quinto filme como Bond, Com 007 Só Se Vive Duas Vezes (1967), Connery se encheu de vez com a perseguição da imprensa e avisou para os produtores que aquele seria seu último filme na franquia. Dito e feito: já na première do filme, o astro assumiu a calvície – em todos os seus filmes como Bond, ele usou uma peruquinha – e já parecia um cara normal, longe do glamour do universo fantasioso de 007. Bem, tão normal quanto Connery poderia parecer.

Contudo, o astro acabaria voltando a Bond alguns anos depois, quando os produtores lhe ofereceram o maior cachê já pago a um ator até então, 1.25 milhão de dólares, para 007: Os Diamantes São Eternos (1971). Connery topou, e depois doou o cachê para o fundo educacional escocês.

Livre de Bond, o astro se reinventou nos anos 1970 dividindo os holofotes, seja em produções com grandes elencos como no suspense Assassinato no Expresso do Oriente (1974) ou no filme de guerra Uma Ponte Longe Demais (1977), ou contracenando com seu amigão Michael Caine na obra-prima de John Huston O Homem que Queria Ser Rei (1975).

Na vida pessoal, Connery estava casado com a atriz Diane Cilento desde 1962. A relação foi meio tumultuada, com o ator tendo casos extraconjugais. Eles se separariam em 1973, e mais tarde Cilento acusaria Connery de ter sido abusivo com ela, inclusive fisicamente. Isso, combinado com uma entrevista na qual ele afirmou que “era aceitável, em algumas situações, um homem bater numa mulher”, chegou a se tornar uma sombra sobre o ator. Anos depois ele tentou refutar essa declaração, mas o estrago já estava feito. Perigoso, mesmo…

Em 1975, Connery casou-se novamente com a pintora Micheline Roquebrune, com quem ficou até sua morte.

Os anos 1980, o Oscar e além

Com o tempo, Connery começou a brincar com sua imagem de ícone da masculinidade. Viveu um incomum Agamemnon na fantasia Os Bandidos do Tempo (1981) de Terry Gilliam, o mestre imortal Ramirez no cult Highlander: O Guerreiro Imortal (1986), e o pai distante e atrapalhado de Indiana Jones na aventura de Steven Spielberg Indiana Jones e a Última Cruzada (1989), mesmo sendo apenas 12 mais velho que o astro Harrison Ford. Connery era uma daquelas pessoas que sempre pareceu mais velho do que realmente era…

Nesse meio tempo, veio o Oscar de melhor ator coadjuvante, merecedíssimo, por um papel que retomou a sua veia perigosa, o do policial Jimmy Malone, que ensina ao Eliot Ness de Kevin Costner como combater a máfia de Chicago em Os Intocáveis (1987), dirigido por Brian De Palma. O filme virou um novo clássico e se tornou um dos mais marcantes da filmografia do ator.

O Oscar coroou sua trajetória no cinema e garantiu mais vários anos de trabalho para o ator, mesmo que às vezes os filmes não fossem bons. Já aos 60 anos e poucos, foi eleito “homem mais sexy do século” pela revista People, distribuiu tiros e pancadas no thriller de ação A Rocha (1996) de Michael Bay, e seduziu uma Catherine Zeta-Jones com idade para ser sua neta no fraquinho Armadilha (1999). Em todos esses papéis, foi convincente. Nesse meio tempo, recusou convites para viver o Arquiteto nas continuações de Matrix e Gandalf na trilogia O Senhor dos Anéis. E então veio o desastre de A Liga Extraordinária (2003), que fez Connery se encher de vez de Hollywood e sumir das telas. Alguns anos depois, anunciou sua aposentadoria.

O legado

Sean Connery não foi apenas um astro; ele mudou o cinema. Acabou virando ícone de uma forma de masculinidade e da revolução sexual dos anos 1960, sem querer. Mesmo assim, foi uma figura que rompeu tabus e levou o cinema de gênero a outro patamar.

Mas, para além disso, sobreviveu ao turbilhão dos anos 1960 e se revelou um ótimo ator, às vezes um dos grandes, e deixou para o público um legado de grandes filmes, e alguns não tão bons, mas, mesmo assim, um pouco melhores por conta da sua presença.

Acima de tudo, foi um homem do cinema, de outra época e de um tipo que não veremos mais. Foi uma pessoa complexa e que ainda hoje deixa intrigados público e fãs de cinema no mundo todo. Talvez a razão para isso ainda seja o perigo. Provavelmente ainda vamos querer experimentar um pouco desse perigo por muito tempo, ainda.

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