“É o passado ou é o futuro?”, o homem de um braço só perguntou lá no começo da nova temporada de Twin Peaks. Ele repete a pergunta neste final, e essa pergunta é meio que a chave para compreender o que Mark Frost e David Lynch fizeram ao retornar à influente e marcante série criada por ambos depois de 25 anos. Por um lado, esta nova temporada representou uma visão do futuro, do que aconteceu com a maioria dos personagens deixados para trás no final da segunda temporada da série original em 1991. Mas por outro, também representou uma jornada ao passado, um reencontro com lugares, pessoas e situações que mudaram depois de tanto tempo.
Aí vem o “pulo do gato” da visão deles: Por mais que a cultura da nostalgia seja presente hoje em nossas mentes, para Frost e Lynch é impossível realmente voltar ao mundo que conhecíamos antes. Pode-se reunir a maioria dos atores, pode-se trazer de volta quase toda a mesma equipe técnica, mas para eles é impossível recriar aquela magia da velha Twin Peaks, especialmente a magia da primeira temporada, aquela que ainda hoje é tão querida de todos aqueles que nela trabalharam, e de tantos espectadores. E se você pensar bem, eles estão certos. Aquela magia era frágil e foi destruída pela rede ABC, quando forçaram os produtores e roteiristas a revelar o assassino de Laura Palmer. Quando o Gigante anunciou que “estava acontecendo de novo” para Cooper na Roadhouse, naquele sétimo episódio da segunda temporada, e todos ficaram tristes, o choro não foi apenas pela morte de Maddie. Foi também pela “morte” de Twin Peaks. A série continuou, foi “revivida”, mas o que se quebrou ali não pôde ser reparado.
Por isso, o retorno de Twin Peaks foi na contramão da cultura da nostalgia. Foi vagamente próximo da série original em alguns momentos, bem diferente na maioria deles. Foi a oportunidade de revisitar o passado, mas também de criar algo novo. Foi o passado e o futuro, e ainda por cima serviu como uma espécie de condensação dos temas de toda a carreira de David Lynch. Ele revisitou seus personagens que mudam de identidade (Cidade dos Sonhos), o clima de pesadelo (Império dos Sonhos), o surrealismo (Eraserhead), a natureza circular de uma história (A Estrada Perdida), e até a veia mais emocional de O Homem Elefante e A História Real. “Vivemos dentro de um sonho”, diz Cooper na Parte 17, e foi o sonho de Lynch. Ocasionalmente frustrante, mas nunca desinteressante; acima de tudo assustador, engraçado e tocante, e diferente de tudo que se vê no momento, tanto em televisão quanto em cinema.
Esses adjetivos também se aplicam aos dois episódios finais da temporada. A parte 17 já começa com Gordon Cole (interpretado pelo próprio Lynch) sendo expositivo (!) e falando a Albert e Tammy sobre o que é a misteriosa “Judy”. Mas logo fica claro que a função da Parte 17 é a de amarrar as pontas da narrativa envolvendo Cooper e seu duplo. Quando o Cooper do Mal chega à delegacia de Twin Peaks, a sensação de ameaça é quase palpável, mas a forma como Frost e Lynch fazem uso de elementos desconexos de episódios anteriores, como Freddie (Jack Wardle), o rapaz da luva verde, ou a misteriosa Naido, para amarrar o seu conflito “Bem vs. Mal” é inteligente e criativa. A coisa chega a atingir níveis de filme de super-herói, com um dos mocinhos literalmente saindo no braço contra a força maligna, o Bob, que retorna com o rosto do já falecido Frank Silva.
De alguma forma, o que poderia parecer bobo nas mãos de outro diretor funciona com Lynch, em grande parte porque ele amplifica o clima de estranheza desse confronto. Porém, mais fascinante é que acontece depois, quando o Bem maior, o nosso herói Cooper, tenta salvar Laura Palmer uma vez mais. Cenas do filme Os Últimos Dias de Laura Palmer (1992) se intercalam com novas cenas entre Kyle MacLachlan e Sheryl Lee, e por um momento o aperto no coração é inevitável. Por trás de todo o humor estranho e clima de novela da Twin Peaks original, havia uma história de horror, e embora a velha série tenha perdido esse foco em alguns momentos, Lynch nunca nos deixou esquecer isso.
Para Lynch o conflito Bem vs. Mal não se resolve, no entanto. As cenas emocionantes da Parte 17 dão lugar a uma nova realidade na Parte 18, na qual o Mal continua presente embora o Bem não desista. Cooper e Diane viram Richard e Linda, como o Bombeiro anunciou na primeira cena da temporada, e Richard encontra Carrie Page, que “parece com Laura Palmer”. O que acontece com Richard e Carrie quando eles retornam a Twin Peaks e à velha casa dos Palmer acaba a série na nota mais apropriada possível: Twin Peaks sempre foi terror, especialmente com Lynch no comando, e o criador encerra (aparentemente) a sua criação com um momento perturbador e que deverá ficar na memória dos espectadores por muito tempo.
A nova realidade da Parte 18 espelha de certa forma a nova Twin Peaks. Richard e Carrie andando pelas ruas da cidade à noite são dois desconhecidos andando por um lugar que não é mais o mesmo. Kyle MacLachlan e Sheryl Lee também não são mais os mesmos. Eu também não sou mais o mesmo que descobriu Twin Peaks em 1993, 94. Ao longo da vida sofremos mudanças, viramos outras pessoas. A nova dona da casa dos Palmer – mais tarde revelaram que se trata da moradora real do imóvel hoje, e essa informação aumenta ainda mais a distorção da realidade – define de vez como uma volta à velha Twin Peaks, se repetir e apresentar algo confortável à audiência, seriam coisas impensáveis para Lynch e Frost. Eles nem se preocupam em responder todas as perguntas e dúvidas destes 18 episódios, embora até resolvam muita coisa. Mas a nova Twin Peaks se encerra mesmo com uma pergunta, tal como a antiga, demonstrando como o coração sombrio da série ainda bate. Podemos mudar, mas no íntimo há uma sementinha incapaz de se modificar, assim como na série. No fim não importa se estamos no passado ou no futuro: é tudo a mesma coisa.
Considerações sobre o chihuahua mexicano:
- MAS E A AUDREY???? Põe na conta. Mas, acho que dá pra imaginar o destino dela.
- Cooper e Laura andando pela floresta, enquanto a cena passa de preto-e-branco para colorida, é um dos grandes momentos imagéticos de 2017.
- Chalfond e Tremond foram as antigas donas da casa. Nossa!
- Minha opinião: Lynch, não suma por mais dez anos de novo. Mas deixe Twin Peaks aí mesmo onde você deixou. Pra mim, acabou. Ou não. As pessoas vão discutir esse final por anos, enfim o desfecho do Família Soprano achou um concorrente à altura.
- Foi um prazer fazer esses textos semanais sobre a série, pessoal. Espero que tenham gostado.
Parabéns pelos comentários sempre coerentes e esclarecedores, só me resta agora rever todos os episódios e me ater a todos os detalhes que em um primeiro instantes não captei, adoro essa série pelo fato dela gerar amor e ódio em algumas pessoas , mas é assim que a vida é, nada é nos dado de mão beijada e nem tudo é como queremos que seja, e quando estamos em um sonho nada é compreensível e lógico. Mark Frost e David Lynch foram brilhantes e fizeram dessa temporada tudo parecer justamente o que não era para ser, e no episódio final revelam o sonho de Cooper/Richard que tenta provar a si mesmo que vive fora desse sonho. nota 10 para a série.
Muito boa a análise. A que vc atribui a confusão do agente Cooper ao final quando pergunta sobre o ano em que estão. Ele mesmo não sabia mais se era passado ou futuro? Eles teriam ido para outra realidade ou a realidade ao redor deles teria se alterado após ele salvar Laura?
Sim, eles atravessaram para uma outra realidade debaixo do poste na estrada, Paulo. Cooper até diz a Diane que se o fizessem, nada seria como antes. Nessa nova realidade, Cooper e Diane viraram Richard e Linda, e havia outra mulher igual à Laura. Acredito também que sim, por um momento ele não sabia se era presente ou futuro, até o eco da antiga realidade despertar a “Laura”.
Certo. E a Laura teria sido levada para essa realidade logo depois que ela foi salva, naquela hora que ela desaparece na floresta? Daí o Leland falar para ele no Black Lodge “achar Laura”?
Algum palpite sobre o que Laura teria cochichado para Dale no Black Lodge (cena final)?
Hehe, não faço ideia do cochicho. Mas o bacana é que cada um pode ter a sua resposta. Abraço!
Poxa, queria muito ter gostado assim. Tenho um carinho imenso por Twin Peaks e estava difícil conter as expectativas pelo retorno da série.
Eu juro que tentei gostar ou “digerir” essa temporada por todos os meios possíveis, mas não desceu. Não entendi ainda o motivo de ter havido um revival sendo que se encerraria de maneira tão abrupta quanto se encerrou na sua segunda temporada. Não esperava que houvessem explicações mastigadas, nem nada disso, mas o mínimo de coerência. Houveram episódios em que a “bizarrice” do Lynch extrapolou num nível impossível de tolerar e momentos em que senti vergonha alheia pelos atores, como, por exemplo, a cena do confronto na delegacia, achei aquilo tão mal feito, de um jeito tão tosco que nem a ideia de surrealismo do Lynch conseguiu justificar a situação como um todo. Parecia um novelão americano.
Achei a direção do Lynch na maioria dos episódios sofrida, como se ele estivesse com pressa pra terminar logo as filmagens do dia e correr pra casa praticar a tal da “meditação transcendental” dele ou raio que o parta.
Não entendo o motivo de ele ter trazido tantos atores da série antiga e ter escalado tantos novos bons e tê-los deixado com tão pouco tempo de tela. Amanda Seyfried é maravilhosa, poderia ter feito um trabalho incrível, mas quase nem aparece; à Naomi Watts foi entregue uma personagem odiosa, materialista e chata que nada acrescenta à trama (fora que a personagem é instável e vira completamente a casaca no fim); Laura Dern, que também é maravilhosa, fica só nos “fuck you” da vida, etc., etc., etc. Personagens que não tem utilidade alguma me deram nos nervos, meu Deus, nunca vi tanto personagem sem coerência antes, com plots são bestas: qual a utilidade do Dougie/Cooper ter ganhado tanto dinheiro, que tenho eu a ver com a empresa de seguros, com aqueles irmãos bestas que são donos do cassino? Francamente.
E outra, independentemente de a ABC ter ferrado com a série em sua segunda temporada é inegável que tanto Lynch quanto Frost tenham abandonado sua cria quando ela mais precisava dele. Muito ainda poderia ser feito, mesmo com a identidade do assassino de Laura Palmer revelada (o season finale da segunda temporada é a prova inegável disso), então a meu ver faltaram com respeito não somente uma vez com os telespectadores, mas duas (a meu ver, é claro) com uma temporada tão medíocre.
Não consigo nem chamar isso de final.
Honestamente, tinha nem noção que estava tão chateado com esse final, só sabia que não tinha gostado, mas escrevendo o comentário vi que estou sim, MUITO chateado, haha. Prefiro acreditar que se encerrou na segunda temporada mesmo e que Lynch e Frost sequer tenham pensado numa terceira temporada.
Eu até agora não sei se eu gostei ou detestei. Verdade que se tiver mais alguma coisa de twin peaks eu irei assistir mas confesso que fiquei frustrado sim. David Lynch diz que o que precisamos saber para entender está tudo lá, pois bem, é muito difícil para mim conseguir juntar as peças e confesso que não me importaria de alguém me trazer mastigadinho. O que aconteceu com aquele par romantico do Cooper no final da segunda temporada? Onde a Audrey está, ela é louca e aquilo é um hospício?! E a Donna…e como ficou o caso do dono do hotel com a assistente dele? O que era aquela câmara de vidro que matou aqueles dois jovens no primeiro episódio?? Onde estava o verdadeiro xerife esse tempo todo? Enfim…apesar de gostar da experiência não escondo minha decepção.
Bem, Jimi, o xerife Harry estava doente, então o irmão dele Frank estava substituindo. Foi a forma com que a produção contornou a ausência do ator Michael Ontkean, que fez o Harry na série original (ele não quis participar do retorno). A Donna não voltou porque a atriz Lara Flynn Boyle também brigou com meio mundo (haha). A Annie, par romantico do Cooper, não retornou na minha opinião porque não teria uma função dentro da nova história que queriam contar. A câmara de vidro, em retrospecto, parece uma experiência para monitorar a tal “Judy”, entidade maléfica que tentou impedir a fuga do Cooper e criou Bob – uma teoria é que foi Judy quem matou os dois jovens na Parte 1. E a Audrey… Bem, vamos imaginar, né? Tendo em vista onde ela acabou na série original, podemos ter ideia de onde ela está nesta nova temporada. Abraço.
Apenas complementando, a Annie, par romântico do Agente Cooper na segunda temporada, teria morrido no hospital após ser resgatada do Black Lodge junto com ele. Isso é mostrado em uma das cenas deletadas do filme “Fire Walk With Me”, traduzido para “Os Últimos Dias de Laura Palmer” aqui no Brasil
parabéns, ótimos comentários. Acompanhava aqui desde o episódio 8. E de fato Twin Peaks nos revela que tudo muda e que presente, passado ou futuro são apenas faces de um prisma que criamos para procurarmos entender a loucura desse mundo. Definitivamente Twin Peaks – o retorno foi o grande evento na tv e pq não na cultura nos último anos – destinada a ser torna clássica. Sentiremos falta (creio que acabou mesmo), mas por favor Lynch não suma – ansioso por novos projetos (quem sabe novos filmes) e Kyle volte a fazer filmes e séries tmb!
desculpe, colei aqui por engano. òtimo saber- gostaria muito de ver cenas excluídas do FWWM. Revendo o final da segunda temporada, a Anie se não me engano, está morta ou quase isso lá no portal do black lodge. Só acho que deveria ter sido citada ao menos nessa temporada, pois foi a pergunta final da série na temp 2ª…. quanto a Audrey pode ter despertado do coma ou mesmo está no whitelodge…
parabéns, ótimos comentários. Acompanhava aqui desde o episódio 8. E de fato Twin Peaks nos revela que tudo muda e que presente, passado ou futuro são apenas faces de um prisma que criamos para procurarmos entender a loucura desse mundo. Definitivamente Twin Peaks – o retorno foi o grande evento na tv e pq não na cultura nos último anos – destinada a ser torna clássica. Sentiremos falta (creio que acabou mesmo), mas por favor Lynch não suma – ansioso por novos projetos (quem sabe novos filmes) e Kyle volte a fazer filmes e séries tmb!
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Aldir, no site twinpeaksbrasil.com.br vc acha um link pra uma versão do FWWM com as cenas deletadas incluídas. Trabalho de edição sensacional. Dá umas 2:30 pelo menos de filme. E tem link pra legenda tb. Outra coisa o filme com as cenas deletadas. De qq forma as cenas deletadas vc encontra fácil no youtube (twin peaks missing pieces)
Muito obrigado e parabéns pelos comentários críticos sobre a série. Acompanhei a cada semana. E digo que, pra mim, seus textos faziam parte dos episódios
Olá… Vi toda essa série agora, devido a quarentena e acompanhei seus textos em relação a terceira temporada. Mandou muito bem, me ajudou esclarecer muita coisa. Não consigo ver essa grandiosidade que muitos fãs dizem sobre Twin Peaks, mas reconheço que é uma boa série, fugindo completamente do convencional.