Sem querer, cá estou novamente falando de um filme “quase alemão” já que a diretora é suíça, mas o tom pesado e cru do filme reflete uma estrutura do cinema alemão. Além, claro, de a língua falada ser o alemão. O filme em questão é Dora ou As Neuroses Sexuais de Nossos Pais, de Stina Werenfels, produção de 2015, baseado na peça de Lukas Bärfuss.

O filme aborda uma questão quase tabu: a sexualidade emergente de adolescentes com deficiências mentais. Com esse tema, a diretora Stina realiza um filme cuja trama e interpretações nos são impossíveis de não causar aflição e insensibilidade. É verdade, o tema poderia descambar para um melodrama (e quase derrapa ao final), mas o desabrochar para a sexualidade numa jovem que não tem a verdadeira noção do que significa seus atos e o descontrole dos pais, que não sabem como lidar com a questão vivendo uma relação já desgastada, mantém o propósito do filme arraigado a uma visão nada moralizante e nem depreciativa.

Dora (Victoria Schulz, excelente) é uma menina que tem problemas mentais (em nenhum momento do filme se diz que ela tem Síndrome de Down), tratada pelos pais com medicamentos de tarja preta e que, aos 18 anos, por decisão de sua mãe, livra-se dessa carga pesada medicamentosa. O que ocorre a partir daí é seu desabrochar para um mundo onde considera todas as novas sensações uma descoberta natural (como de fato é) e sensorial que a coloca noutra dimensão. A percepção de sua sexualidade até então adormecida reflete-se em atos que desconcertam os pais. Estes ficam mais desesperados ainda quando Dora passa a se relacionar com um estranho, que ela praticamente seduz e é por ele estuprada. A cena, num banheiro público, é muito poderosa e realista, no sentido de que revela a diferença dos perfis dos personagens: enquanto para o homem trata-se de mais uma transa arrojada, machista, para Dora é uma descoberta natural, sem reflexão, quase de alegria.

Grávida, mesmo sem ter a dimensão do que isto significa, Dora nos apresenta uma primeira neurose da mãe: mesmo amando a filha, Kristin (Jenny Schily) mistura os sentimentos de aflição e ciúme ao saber da gravidez, pois sempre almejou engravidar novamente para ter um “filho normal”, sem conseguir. Percebe-se que a união do casal se dá apenas pela condição de Dora. É certo que na forma como Dora engravida se poderia de imediato “exigir” o aborto da criança, mas o que leva Kristin a forçar essa situação é muito mais sua frustração individual e o fato de saber que o feto é “normal”.

Os traços da sociedade europeia, da cultura mais fria e insensível germânica, manifestam-se na condução da trama ao apresentar pais mais “racionais” obedecendo a regras que obedecem a valores morais individualistas, capazes de assumir posturas impensáveis na sociedade brasileira, como conversar calmamente com Peter (Lars Eidinger), o homem que engravidou Dora, ou mesmo de querer entender como normal o interesse de Dora por sexo e casamento. Mesmo considerando o comportamento de Peter como abusivo e de caráter moral repulsivo, os pais procuram entender que o que se passa na cabeça de Dora é a descoberta também do amor, obviamente não correspondido por Peter. Como ele diz ao pai, em determinado momento, ele apenas quer transar com Dora e ela também assim quer. Simples assim. Sendo ela maior de idade e não havendo tutoramento dela por sua condição por decisão dos próprios pais, ela responde por seus atos. Simples assim.

Nós, espectadores, e os pais sabemos que Dora, apesar de sua maioridade, não tem o discernimento intelectual capaz de decidir o que sua sensibilidade e impulsividade lhe impõem (os hormônios falam mais alto), que é viver esse relacionamento amoroso. E nós nos inquietamos; nós nos desesperamos exatamente como os pais por não termos saídas, caminhos capazes de evitar o que fatalmente volta a ocorrer: nova gravidez.  Quase como uma vítima da Síndrome de Estocolmo, Dora vai percebendo aos poucos, ainda dentro de suas limitações, a dureza da vida e a realidade massacrante de uma desestruturação familiar.

A fotografia do filme nos conduz a ter um ponto de vista quase abstrato de Dora ao impor o desfoque ou o uso de lentes especiais, como a nos revelar uma mente indefinida entre o traço infantil e o pensamento adolescente da personagem. A montagem e os enquadramentos das cenas, contudo, obedecem a regras tradicionais do cinema. Porém, o maior destaque está mesmo no elenco. Victoria Schulz se entrega intensamente ao personagem de Dora, chegando até a exagerar nos trejeitos, diríamos. Jenny Schily vive a mãe confrontada entre sua angustiante intenção de proteger a filha deficiente e sua própria vontade de viver a vida, tolhida exatamente por essa condição. Lars Eidinges é um homem frio, distante, aparentemente insensível, que tem noção de que ao se deixar seduzir por Dora e estupra-la criará uma dependência dela ao torná-la sua amante. Seu personagem Peter é de um homem cínico, que tem o discernimento de que está brincando com os sentimentos de uma pessoa indefesa. E esse complexo papel ele o vive com excelente competência.

Se o filme tem aparente centralidade em Dora, seu subtítulo nos remete a possíveis neuroses sexuais de seus pais. Uma segunda e forte neura da mãe é sua conformada postura em viver a vida que leva, que a todo o momento do filme nos é revelada como castradora de suas reais vontades de viver, uma vida encapsulada por uma realidade dura que no íntimo sempre rejeitou. Daí sua vontade de ter outro filho, na ideia que esse fosse “normal”. Porém, a condição dessa vida, ao levar sua relação com Felix, pai de Dora, ao desgaste, revela a própria condição de sua inquietude em conhecer os limites de sua sexualidade e à capacidade de vivê-la intensamente.

Exibido no Festival do Rio de Janeiro de 2015 (seção Expectativa 2015), o filme é um drama psicológico pesado, frio e complexo, com uma linguagem visual e verbal explícita, que nos leva a compartilhar sentimentos igualmente tensos, nos fazendo mergulhar numa trama corajosa de como encarar com cautela a descoberta da sexualidade de uma pessoa com deficiência e polêmicos relacionamentos abusivos. Porém, não tem a pretensão de oferecer respostas. Um tema tabu não só para o cinema como para a sociedade.