Os “acertos” construídos pelos aliados após a II Guerra Mundial na região dos Bálcãs – leia-se a criação da Iugoslávia – produziram uma quantidade enorme de conflitos que devastaram as populações daquela região, fazendo surgir várias nações distintas por questões políticas, religiosas e étnicas. Vale lembrar que foi dessa região que partiu o “sinal” para a deflagração da I Guerra Mundial – o assassinato do arquiduque da Áustria por um indivíduo sérvio – e de lá pra cá a região se transformou em um barril de pólvora. Hoje essa situação parece contornada, com a vida voltando ao normal naquilo que chamamos de paz. O cinema também fez o registro desses conflitos e produziu uma boa quantidade filmes dos quais cito, como exemplo, Terra de Ninguém, de Danis Tanovic, Antes da Chuva, de Milcho Manchevsky, Underground – Mentiras de Guerra e A Vida é um Milagre, ambos de Emir Kusturica, Rua da Redenção, de Miroslav Terzic, Na Terra de Amor e Ódio, de Angelina Jolie, My Beautiful Country, de Michaela Kezele, e Um Dia Perfeito, de Fernando León de Aranoa.

Todo este preâmbulo para dizer que, ali próximo dessa região, outra situação se mantém conflituosa até nossos dias: o massacre armênio pelos turcos até hoje é negado pela Turquia apesar de enorme quantidade de elementos comprobatórios. Também o cinema se debruçou (e se debruça ainda) sobre esse genocídio armênio, produzindo Ararat, de Aton Egoyan, Armênia, de Robert Guédiguian, e Lost Birds, de Aren Perdeci e Ela Alyamac, o primeiro filme turco sobre o assunto. Vamos rememorar os fatos: em abril de 1915, alguns intelectuais e lideranças foram presos em Constantinopla, atual Istambul, por defenderem a independência da Armênia, que era um enclave cristão dentro do império otomano que se fragmentava. Nesse momento, o partido nacionalista dos “jovens turcos” implantou a política do “panturquismo”, que estabelecia uma cultura de privilégios aos povos turcos e seus descendentes, em detrimento dos demais. As prisões de abril foram só um começo e estima-se que, até 1923, um milhão e meio de armênios tenham sido mortos de forma bárbara, semelhante ao que mais tarde se daria com judeus na II Guerra Mundial.

O diretor Robert Guédiguian, marselhês de origem armênia e hoje com quase 63 anos, é um desses cineastas comunistas que se mantém firmes em suas convicções políticas e que transmite isso na maioria de seus filmes, às vezes até didaticamente. Ele e o inglês Ken Loach talvez sejam os mais constantes cineastas apegados aos princípios marxistas ou “de esquerda”. Pois bem, para chamar a atenção do centenário do massacre turco Guédiguian realizou em 2015 o filme Uma História de Loucura. Mas ele não faz um filme histórico, no sentido de narrar o conflito em si tal qual poderia ter-se dado; sua crítica permeia as relações tensas entre turcos e armênios na atualidade. Para isto, buscou ajuda no texto do jornalista espanhol José António Gurriarán, que relata o que lhe ocorreu quando uma bomba foi deflagrada em Madri, em 1980, e teve suas pernas amputadas. O atentado foi assumido por grupo armênio. Gurriarán passou então a pesquisar tudo sobre o genocídio, tornando-se sua obsessão encontrar os autores do atentado. Isto tudo está relatado em seu livro “La Bomba”, do qual o cineasta extrai um dos personagens forte da trama de seu filme.

Em uma entrevista no lançamento do filme, o diretor se diz internacionalista e que, de modo algum, fez o filme para cultivar o ódio, como muitos começaram a dizer. “Se a história parece utópica – um homem atingido por uma bomba é praticamente adotado pela família daquele que detonou o artefato – digo que a realidade se impõe mais do que podemos admitir. Sempre respondo com ‘leiam o livro de Gurriarán’”. Contudo, este não é o único ponto crucial da trama de Uma História de Loucura. A questão está exatamente na palavra “loucura”. O que ela reflete no mundo atual? Seria loucura desejar viver em paz na terra que social e politicamente foi arrancada de um povo? Será loucura lutar por manter culturalmente valores étnicos em meio a geopolítica mundial? Será admissível, nessa luta, que inocentes sejam mortos? O que significa a denominação ‘terrorista’ atribuída àqueles que lutam por esse propósito quando as nações poderosas cometem os mesmos atos, mas em nome absurdamente da paz? Estas e outras questões percorrem o filme e a cabeça de Guédiguian, um comunista de forte tendência humanista, que sempre defendeu pescadores, operários e os menos favorecidos. Que ousa manifestar-se contrário a todo ato de violência e que está preocupado com a escalada de ódio de todos os lados dos conflitos.

O filme começa com imagens em preto e branco em uma Berlim de 1921, quando um jovem armênio, Soghomon Thelirian assassina a sangue frio, em uma praça, Talaat Pacha, identificado como o grande responsável pelo genocídio. Isto nos transporta para um pretenso mundo real, quase documental. Preso e absolvido por sua eloquente defesa e comprovação documental, Thelirian passa a ser o símbolo da possível luta guerrilheira armênia. A história então dá um pulo até os anos 1980 e a ficção ganha destaque, tendo como base o livro de Gurriarán. Estamos em Paris e conhecemos a família de Anouch (vivida intensamente pela ótima Ariane Ascaride, musa e esposa de Guédiguian). Seu filho, Aram, é forjado nas dores do massacre ainda sentido por sua avó e ambiciona tomar parte da luta armada em favor dessa causa, mesmo contra seus pais, hoje bem estabelecidos com uma mercearia de Marselha. Aram participa de um atentado contra o embaixador turco em Paris e vê quando um jovem ciclista, Gilles, passar exatamente no momento e também é atingido. Sendo sua primeira investida, Aram sente remorsos, mas isso não o demove de continuar sua luta por acreditar na justeza dela e viaja ao Líbano para se juntar ao movimento guerrilheiro.

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É nesse instante que o filme praticamente tem uma divisão em sua trama: acompanhamos a trajetória de Aram e suas desconfianças nas ações violentas do grupo armado e a dedicação humanista de Anouch para com Gilles, chegando a procurá-lo no hospital em que convalescia e até mesmo a oferecer abrigo em sua casa quando este resolve conhecer a família de seu algoz. Se por um lado essa bifurcação nos permite observar as questões internas ideológicas que permeiam todas as facções políticas (e não só da luta armada), por outro verificamos uma necessidade de refletirmos nossas ações mais duras e cultivar laços que resguardem nosso lado mais humano, no sentido sociológico da palavra. No entanto, quando Anouch transfere seu amor maternal para Gilles (ela quer que o filho peça perdão a ele) e Gilles, por seu lado, começa a entender as razões da causa armênia ao ponto de querer conhecê-lo pessoalmente, a narrativa pende para o melodrama e quase escorrega em clichês. Por sorte e talento, Guédiguian dribla esse efeito construindo personagens sóbrios e sem excessos capazes de traçar uma peculiar interligação entre questões políticas e humanas. No fundo, é como se ele, baseado na alteridade, nos convidasse a assumir o papel do outro, para ao entendê-lo, pudéssemos nos reconstruir. A narrativa nos oferece a oportunidade de nós, espectadores, ainda que não sejamos armênios, nos colocarmos no lugar destes personagens, inclusive no de Aram (que não é nenhum ‘monstro terrorista’) e nos perguntarmos se é legítimo reagir à injustiça com o uso da força, ou se é possível lutar por uma causa justa sem o uso de violência. A História está a nos dizer, todo dia, que dificilmente isto pode ocorrer somente por relações institucionais diplomáticas…

Ressalto um momento do filme que me tocou bastante ao misturar o drama pessoal com a lucidez política de que a luta tem que continuar pela justiça social: a dança armênia de Hovannès, patriarca da família de Aram, é simbolicamente eloquente dessa resistência. Por outro lado, deveria ser com ela que o filme concluiria, pois as cenas finais de enterro das cinzas da mãe de Anouch em solo fronteiriço além de serem desnecessárias parecem inverossímeis, simplesmente nostálgicas.

Por fim, ao mesmo tempo em que distingo Uma História de Loucura um dos filmes mais políticos sem ser panfletário de sua causa dos últimos anos, questiono a dedicatória do diretor, no final, aos “camaradas turcos”. Ou é uma homenagem aos comunistas turcos, que existem e comungam do restabelecimento de direitos armênios, ou uma homenagem aos críticos aguerridos da Nouvelle Vague francesa (Jean-Luc Godard e François Truffaut), conhecidos na época como os ‘jeunes turcs’. Ou até mesmo se é uma “homenagem irônica” aos líderes turcos…