Em 2001, o diretor Richard Linklater já era um interessantíssimo realizador do cinema indie americano. Ele havia lançado duas obras que colocariam seu nome em posição de destaque em qualquer estudo sobre produções independentes da emblemática década de 1990: “Jovens, loucos e rebeldes” (1993) e “Antes do amanhecer” (1995). Em ambos, os diálogos e referências surgem como marcas registradas que enalteciam as vivências subjetivas de seus personagens. No início do século XXI, porém, Linklater deu ao seu cinema mais reflexivo uma espécie de transição simbólica entre a juventude e a maturidade. Essa fase foi inaugurada por “Waking life”.

Alguns dos personagens de “Jovens, loucos e rebeldes” eram adolescentes com um pé no mundo para maiores de 18 anos, enquanto que o duo Jesse e Celine de “Antes do amanhecer” estavam na casa dos 20 anos. Seus modos de sentir e pensar o mundo, como era de se esperar, dialogavam com esse frescor e juventude de forma tão impulsiva quanto profunda, o que era demonstrado também pela mão de Linklater na direção. Já em “Waking life”, seu cinema amadurece e se complexifica: as divagações do personagem principal (Willey Wiggins), de quem nunca descobrimos o nome, mas que percebemos como um alguém jovem, estão para além de seu momento cronológico, digamos assim.

Na trama, esse protagonista se vê dentro de um sonho, e ao tomar consciência disso, sua mente vaga por várias situações expostas como que em blocos ou esquetes. Os temas que são trabalhados ampliam-se para além das preocupações imediatas da juventude: “como encontrar o amor?” ou “quem eu sou ou devo me tornar?” estão presentes indiretamente em “Waking life”, mas longes de serem o foco principal. Para Linklater, o filme reverbera algo de mais básico e, curiosamente, provocativo: quem somos quando sonhamos? Somos quem somos despertos quando sonhamos? Há, de fato, uma separação existencial entre o sonho e o momento desperto?

Partindo (e depois despedaçando) o senso comum da diferenciação entre sonho e “vida real”, o filme traz diversos questionamentos sobre a existência. Ao invés de seguir possíveis tradições fílmicas de como fazer isso, tais como as densas tramas familiares de Ingmar Bergman ou a verborragia irônica de um Woody Allen da boa safra, Linklater aposta na melancolia e delicadeza que já nessa época marcavam seu cinema. Não por acaso, o filme faz uso de uma técnica de animação que se sobrepõe a atuação de atores reais, permitindo que vários momentos das divagações possam ser ilustrados de forma poética, mudando-se os traços da arte ou introduzindo elementos que fogem ao comum.

Com isso, temos um visual de sonho, com os sentimentos e sentidos transformando diretamente o que é experimentado pelo protagonista. A inspiração para a animação não poderia ser outra além dos relatos (científicos ou não) do uso de LSD, droga conhecida por alterar nossa percepção da realidade. O resultado é, literalmente, uma viagem, que varia desde os traços mais fluidos, flutuantes mesmo, até outros mais expressionistas, nos quais linhas básicas desenham cenários e personagens quando assim o tom da trama demanda.

Como era de se esperar, a montagem só dá um senso de continuidade na medida em que isso casa com a “lógica de sonho”, que, sendo sonho, nem sempre tem lógica. É comum, então, vermos nosso protagonista sendo jogado de um ambiente a outro sem explicação prévia e sem isso nunca causar espanto a ele. É um momento de metalinguagem curioso, uma vez que tanto a montagem quanto os sonhos trabalham com fragmentações da percepção humana, demandando de nossa mente uma postura ativa para preencher as lacunas deixadas no processo. Assim como nosso protagonista não se pergunta como diabos ele chegou num carro-barco dirigido por Paul Giamatti, nós também não nos perguntamos o que acontece entre um corte e outro quando assistimos a um filme.

Uma das “colas” que garantem unidade ao sonho do protagonista e ao filme como um todo é a belíssima trilha sonora instrumental. A Tosca Tango Oschestra executa músicas compostas por Glover Hill e Julian Plaza, além de aproveitar uma de Frederic Chopin. O tango é a influencia direta, o que resulta numa construção de atmosfera muito interessante ao filme quando une a aparente confusão, espontaneidade e tensão desse ritmo com o tema do filme.

E tal como num sonho, ora nos surpreendemos ao ver Steve Fitch (músico e fotógrafo na vida real) como um macaco explicando eloqüentemente como os seres humanos usam a arte e a linguagem em geral numa tentativa de se diferenciarem dos demais seres e darem sentido à existência, ora nos descobrimos extremamente à vontade ao vermos nosso protagonista voando ou testemunhando a transformação do cineasta Caveh Zahedi e do poeta David Jewell em nuvens após irem de uma discussão sobre a ontologia da imagem fotográfica de André Bazin para uma reflexão sobre a vivência e a percepção da beleza da vida.

Em contraste, o sonho enquanto espaço de liberdade absoluta também é apresentado em seu caráter destruidor das estruturas normalizadoras da sociedade. É o que vemos no discurso do estranho que ovaciona o caos, a violência, a guerra e a destruição como elementos constituintes da vida, exercendo uma atração irresistível aos seres humanos. Mais instigante ainda é ele destacar esses elementos e, ao mesmo tempo, contestar o papel da mídia enquanto representadora de “realidades” para, logo depois, dizer “deixe minha falta de voz ser ouvida” e atear fogo ao próprio corpo.

Leve e vívido, como um sonho

Linklater propõe uma gama enorme de referências e pontos de vista sobre a temática, dialogando diretamente com a filosofia, a sociologia, física, biologia e artes para isso. De forma consciente ou não, ele acaba expressando uma mudança paradigmática básica da ciência atual, segundo a qual não podemos esperar compreender um fenômeno à luz de apenas uma área especializada de conhecimento. Se o tema escolhido para o filme é denso, como bem demarca a presença desses cientistas e pensadores transmutados em animação, a junção desses elementos no escopo do estilo do diretor gera um produto final de extrema leveza, que não cansa o espectador ao imergi-lo em tantas reflexões que, a princípio, não seriam lá de fácil digestão.

Um dos pontos a partir do qual “Waking life” consegue essa proeza é na mescla de seus “esquetes oníricos”. Temos a versão animada do filósofo David Sosa explicando sobre livre-arbítrio e responsabilidade individual, citando Aristóteles, Santo Agostinho, os aspectos biológicos que regem boa parte de nossa existência e possibilidades de ser no mundo; mas também temos o protagonista papeando com os personagens de Jason T. Hodge, Guy Forsyth e John Christensen sobre ter sonhos malucos, o que são sonhos lúcidos (aqueles que podemos controlar) e como se divertir bastante com eles.

Também é discutido por que acharíamos que as vivências que temos nesses momentos significariam menos que aquelas que temos quando estamos acordados, uma colocação muito presente em determinadas culturas indígenas norte-americanas. É desse momento descontraído que vem, aliás, uma das frases mais impactantes do filme: “Dizem que os sonhos são reais enquanto duram. Não podemos dizer o mesmo da vida?”.

No final das contas, toda a discussão científico-filosófica de “Waking life” resvala mesmo é pelo que Linklater sabe mostrar de melhor: a poesia presente nos pequenos momentos. Não por acaso, um dos trechos mais lembrados desse filme é a conversa entre o protagonista e um jovem que anda pegando caronas em trens, cujo discurso flerta com o significado menos literal de sonho, o da idealização de atos e sentimentos capazes de mudar o mundo. Passados 15 anos do lançamento de “Waking life”, ainda faz muito sentido o viajante dizer que “são tempos difíceis para sonhadores” (essa frase apareceu aqui antes de aparecer em “Amélie Poulain”) e que devemos “sonhar com nossas mãos e nossas mentes”. Difícil não se tornar clássico com essa, heim?