Pouca gente acompanhou por aqui, mas a última década marcou uma verdadeira explosão do cinema feito na Ásia.

Por toda parte – Japão, China, Hong Kong, Coreia do Sul, Vietnã –, diretores de alto nível e com propostas estéticas pessoais e inconfundíveis disputavam a atenção dos circuitos cinéfilos mais antenados. Até o mestre Martin Scorsese aderiu à onda, com um remake de um thriller de Hong Kong (Conflitos Internos, de Andrew Lau e Alan Mak, que virou Os Infiltrados). Spike Lee refez Oldboy, do coreano Park Chan-Wook. Walter Salles fez um recente documentário sobre o trabalho do talentoso chinês Jia Zhangke. Mais até que o da América Latina, o cinema asiático foi quem deu a cara da Sétima Arte neste início de século.

Mas mesmo em meio a essa abundância de talento, Wong Kar-wai se destaca. Nascido em Hong Kong, seu estilo não tem par: o visual delirante, de cores explosivas, que abusa de efeitos de aceleração e retardo dos frames; o universo temático próprio, que mesmo quando envereda pelo thriller ou pelo wuxia (os filmes de artes marciais chineses), sempre ressalta os dramas amorosos dos personagens; e o uso pessoal e criativo da música, que é tão parte da narrativa quanto as imagens e a trama.

No cinema contemporâneo, poucos criadores têm tanto a dizer, tantos motivos para continuar nos surpreendendo. Adentre, agora, o universo peculiar, fascinante, mas de apelo e comoção universais, que é o cinema de Wong Kar-wai.

O começo: a renascença de Hong Kong, os primeiros roteiros e Conflito Mortal (1982-1987)

Kar-wai nasceu em 1957 em Hong Kong, então uma colônia britânica, mas partiu com os pais para a República Popular da China em 1963. Como o menino só conhecia o cantonês, o dialeto falado na província, a interação com os colegas de escola foi motivo de aflição em seus primeiros anos na nova pátria. Para tentar aliviar a solidão do filho, a mãe de Wong começou a levá-lo ao cinema. A experiência, segundo o diretor, teve o peso de uma revelação: os filmes se impunham pela força das imagens, eram profundos, impactantes, prescindiam do entendimento do idioma para comunicar emoção.

Mais ainda: o garoto tímido, de poucas palavras, descobriu uma maneira de se expressar perante o mundo, de transmitir suas inquietações e experiências. Ainda na adolescência, ele já acalentava o sonho de se tornar cineasta. Em 1980, após dois anos estudando design gráfico, Kar-wai candidatou-se a uma vaga de estágio numa emissora de Hong Kong. A oportunidade foi decisiva: além de aprender na raça o métier – entre outras coisas, Wong escrevia roteiros e dirigia novelas e seriados –, o rapaz acabou indo parar na órbita do ator e produtor Alan Tang, um dos maiorais da chamada “renascença” do cinema de Hong Kong, período em que o país modernizou sua produção e despontou no mercado internacional. Em parceria com Tang, Kar-wai produziu vários scripts entre 1982 e 1987, e Tang seria o principal financiador por trás de seu filme de estreia, Conflito Mortal (1988).

Como costuma acontecer aos primeiros filmes, Conflito não revela, in full, a extensão do talento de seu criador. Mesmo assim, vista em retrospecto, a obra impressiona: a trama convencional, espécie de refilmagem de Caminhos Perigosos (1973), de Scorsese, é enriquecida o tempo todo pelas idiossincrasias de Kar-wai, como as cores alucinógenas, a câmera super-lenta, o uso de canções pop românticas (“Take My Breath Away” pode ser comovente, acredita?). De quebra, ainda traz um trio de atores-chave na filmografia do diretor: Andy Lau, como o protagonista Wah, Jacky Cheung, como o encrenqueiro Fly, e a maravilhosa Maggie Cheung, como Ngor, prima e paixão de Wah. O filme foi um sucesso colossal, faturando 11 milhões de dólares de HK, a maior marca de Wong até O Grande Mestre, de 2013. Talento provado, tino comercial também: começa, oficialmente, o voo de Wong Kar-wai no cinema.

Nasce um autor: de Dias Selvagens a Anjos Caídos (1990-1995)

Já que o que conta, na indústria de Hong Kong, é o lucro, o flanar de Kar-wai foi curto, rasteiro e desapontador: seu segundo filme, Dias Selvagens, falhou miseravelmente na bilheteria, e encerrou a parceria com Alan Tang de forma abrupta e tensa.

Ainda assim, a crítica e os conaisseurs do diretor são taxativos: o filme é absolutamente brilhante, comovente, revelador. Unindo as histórias de vários personagens marcados pela nostalgia e por vidas amorosas frustradas, Dias é elegíaco e hipnótico na mesma medida, uma criação única, sui generis, de seu diretor, e põe na mesa todos os elementos que farão a carreira posterior de Kar-wai: novos intérpretes característicosLeslie Cheung, como o cafajeste Yuddy; Carina Lau, como a dançarina Mimi; Rebecca Pan, como a mãe adotiva do protagonista; e, mais importante, Tony Leung, como o homem misterioso que só aparece na cena final da obra –, o abandono da cronologia linear, e a construção de uma atmosfera característica, marcada pela ambientação noturna, o uso de cores fortes, o clima de lassidão e melancolia, e a trilha de clássicos românticos, principalmente do cancioneiro latino. A produção foi longa e marcada por problemas, entre os quais o descarte do personagem de Leung, mas não havia como voltar atrás: um poderoso cronista dos desencontros românticos entra em cena.

A temática é reforçada em Amores Expressos, o primeiro filme do diretor (agora também produtor) a ganhar distribuição no Ocidente, graças aos esforços do americano Quentin Tarantino, admirador de longa data de Wong. Continuando as premissas do filme anterior, Amores traz duas histórias envolvendo homens e mulheres desiludidos, desesperados por uma nova ligação romântica. Diferente, porém, do registro melancólico de Dias, Amores é todo vertigem, velocidade, exagero de sentidos. O humanismo e a empatia do diretor se evidenciam no contraste: mesmo na frenética e populosa Hong Kong moderna, as pessoas continuam tão sozinhas e carentes de afeto quanto antes, se não até mais. Outro triunfo de forma, conteúdo e intenção, e prova definitiva do talento do cineasta para captar um nervo sensível da vida contemporânea: a solidão que se esconde por trás do bombardeio de informações e sentidos trazidos pela tecnologia.

Esse universo próprio do diretor não para de crescer e se realimentar: com o trabalho seguinte, Cinzas do Passado, Kar-wai levou sua investigação peculiar da solidão ao mundo do wuxia, com suas batalhas espetaculares de kung-fu, e o resultado é o filme mais surpreendente – e desorientador – da sua carreira.

Centrado na figura de Ouyang Fen (Leslie Cheung), um exímio espadachim e “resolvedor de problemas” numa época remota da China, a trama apresenta os diversos tipos que atravessam a vida do guerreiro, ao mesmo tempo em que desvela a complicada relação deste com a cunhada (Maggie Cheung), o grande amor de sua vida. Focado muito menos nas batalhas do que no tumulto íntimo dos protagonistas, Cinzas é, sem dúvida, um dos wuxias mais estranhos e peculiares da história, mas tem bastante valor: nunca o delírio visual do diretor foi tão longe – nas filmagens longuíssimas, realizadas no deserto de Gobi, na Mongólia (para se ter ideia, Amores Expressos foi todo filmado e lançado enquanto a produção de Cinzas se arrastava), Kar-wai acumulou um conjunto riquíssimo de imagens saturadas, contrastantes, do deserto de um laranja abrasador ao céu azul quase lazúli –, além de momentos profundamente poéticos, como o monólogo de Maggie Cheung perto do final. Ainda assim, a mistura confusa de gêneros e temáticas, além da trama elíptica, não-linear, completaram a receita anticomercial da obra, outro duro golpe para o diretor, depois de tanto tempo e esforço investidos na produção.

Completa o período de amadurecimento de Wong uma espécie de continuação de Amores Expressos: Anjos Caídos (1995), obra que, visual e conteudisticamente, reedita as virtudes daquele grande filme. Apesar do resultado cativante, a falta de ambição da obra apenas ratifica o talento superior do mestre, capaz de emprestar vigor até a roteiros relativamente fracos.

“Grande mestre”: o reconhecimento internacional (1997-2013)

A carreira de Kar-wai se consolida de vez com Felizes Juntos (1997). A investigação sensível e melancólica da relação de um casal gay expatriado na Argentina fornece a base para o cineasta alçar novos voos de criatividade: da fotografia altamente rebuscada de Christopher Doyle à música inspiradíssima, que agrega, entre outros, o nosso Caetano Veloso, o mestre do tango Astor Piazzolla e o roqueiro americano Frank Zappa, o filme é mais um show de inspiração e ousadia do mestre hongkonguiano, além de abrir terreno para o reconhecimento internacional, ao lhe render o prêmio de melhor diretor em Cannes.

A esta altura, o maduro e experimentado prodígio do cinema chinês tem a confiança necessária para empreender o projeto de uma vida: o magnífico Amor à Flor da Pele, lançado em 2000. Resultado de longuíssimas filmagens, onde diretor e atores abandonaram completamente o roteiro original para perseguir a verdade profunda dos personagens, a obra amplia a temática soturna de Dias Selvagens, criando um ensaio devastador sobre uma paixão mitigada pelas convenções. Chow Mo-wan (Tony Leung) e Su Li-zhen (Maggie Cheung) são vizinhos de prédio que descobrem que os respectivos cônjuges estão tendo um caso. Decididos a investigar como a relação começou, ambos acabam se apaixonando de forma profunda, irremediável – e impossível, diante tanto das normas sociais da Hong Kong dos anos 1960 quanto da vontade de não repetir as vilezas dos parceiros.

Com um diretor brilhante no auge, a música magnífica – a gravação de derreter corações de “Quizás”, por Nat King Cole –, mas sobretudo com o desempenho superlativo dos atores, especialmente Maggie Cheung, Amor à Flor da Pele é a palavra definitiva de Kar-wai, a suma das investigações sociais, morais, metafísicas sobre as quais ele vem se debruçando durante toda a sua carreira de filmmaker.

O impacto foi grande também no panorama internacional: com dois prêmios em Cannes e uma trajetória triunfal em diversos festivais ao redor do mundo, Amor colocou Wong no primeiro time dos realizadores globais. Agora um patrimônio do planeta, nome incontornável do cinema da virada do século, Wong Kar-wai diminuiu o ritmo, mas não a qualidade e a intensidade de suas histórias.

2004 viu chegar 2046 – Os Segredos do Amor, uma continuação tanto de Dias quanto de Amor. Ainda mais desencantado no tom, o filme acompanha as andanças de Chow (Leung), que tenta escrever um livro, ao mesmo tempo em que se envolve com diversas mulheres, todas incapazes de curar o sentimento arraigado do protagonista por sua antiga vizinha. Embora não alcance a altíssima voltagem de Amor à Flor da Pele, trata-se de outro filme estupendo, com mais uma reflexão memorável sobre a necessidade e a imponderabilidade do amor.

O ensaio seguinte do diretor não foi tão bem-sucedido. Um Beijo Roubado (2007) é a primeira produção em língua inglesa do cineasta, com um elenco estreladíssimo (Jude Law, Natalie Portman, a estrela pop Norah Jones), mas que soa artificial, sem a transparência de intenções e a rica substância humana de suas obras anteriores. Ainda assim, trata-se de um belo e despretensioso road movie, onde, assim como em Conflito Mortal, as idiossincrasias do diretor emprestam um necessário (e colorido, e luxuriante) fôlego.

Seu trabalho mais recente, O Grande Mestre (2013), recupera a forma. Ao levar mais uma vez às telas a história do monge e lutador Ip Man (Tony Leung), figura arquetípica do wuxia, o diretor adota um estilo épico, poderoso, violento – e surpreendentemente fiel às convenções do gênero, tão distante de Cinzas do Passado quanto este o era de todo o wuxia precedente. Mas, para um diretor tão pouco convencional, não deixa de ser uma novidade – além da realização ser impecável e empolgante, digna de figurar entre os clássicos do gênero.

“Surpresa” é a palavra que regeu a carreira de Wong Kar-wai até aqui. Beleza, profundidade, sabedoria, são outras, todas marcas de um nome realmente diferenciado do cinema, que vem enriquecendo de forma imensurável a sua história nos últimos 27 anos. Seus filmes são testemunhos belíssimos, assombrosos, da humanidade nestas quase três décadas. Da mesma forma que Akira Kurosawa, Satyajit Ray, Hayao Miyazaki e outros gigantes do Oriente, o cinema de Wong expressa algo de novo, ao mesmo tempo profundamente pessoal e mais universal que todos os demais realizadores de sua época, com aquela marca peculiar, indefinível mas imediatamente reconhecível, que diferencia os grandes (verdadeiramente grandes) artistas. Acompanhar essa trajetória, adentrar esse universo peculiar durante todos esses anos tem sido um privilégio. Mas privilégio maior é saber que há outros por vir. Oxalá muitos ainda.