Alguns filmes entram na história do cinema por apresentarem inovações técnicas ou narrativas. Outros, por algum elemento fora do comum, como o trabalho excepcional de um ator, por exemplo. E há aqueles que se tornam especiais e marcantes apenas por serem “boas histórias bem contadas”. É o caso de Um Sonho de Liberdade, que nestes quase vinte anos desde seu lançamento se tornou uma das produções mais queridas pelo publico em todo o mundo.

É um filme que contém um bom número de clichês narrativos e, de fato, não há nada de inovador a respeito dele, nem tematicamente nem na forma como é filmado. No entanto, há algo de primordialmente poderoso na história, que enfoca temas bastante humanos, e o faz com sensibilidade e até um pouco de arrojo – isso mesmo, não é um filme tão “quadradão” como a princípio se poderia pensar.

O filme se inicia nos anos 1940 e conta a história de Andy Dufresne (interpretado por Tim Robbins), um banqueiro acusado de matar a esposa e o amante dela num acesso de raiva. Ele é condenado e enviado à temida prisão de Shawshank, no Maine. A chegada e a primeira noite na prisão já são assustadoras o bastante, mas o pior está por vir… Ao longo dos anos, que viram décadas, Dufresne passa por maus bocados nas mãos dos prisioneiros homossexuais e com o corrupto diretor da prisão. Mas ele também consegue encontrar pequenas formas de melhorar a vida dos seus companheiros de prisão. Com o tempo, o prisioneiro Red (Morgan Freeman) se torna seu melhor amigo. É Red quem conta a tocante e surpreendente história do seu amigo para nós, o publico.

A obra é baseada num conto do renomado autor de terror Stephen King, que de vez em quando foge dos monstros e das tramas assustadoras e se exercita em outros tipos de narrativa. King é o que se convém chamar de “contador de histórias” e quando criança viu muitos filmes de prisão. O conto foi adaptado para o cinema pelo roteirista Frank Darabont, que também dirigiu o filme.

Darabont é outro apaixonado pelo cinema das antigas e conheceu King quando realizou um curta baseado num dos contos do escritor. Àquela época, Darabont já era um roteirista estabelecido em Hollywood, tendo escrito roteiros para filmes de terror, principalmente. Um Sonho de Liberdade foi sua estreia como diretor no cinema, depois de ter dirigido o telefilme de suspense Sepultado Vivo (1990).

Ele se mostrou, com o tempo, um dos melhores roteiristas a adaptar King para o cinema. Darabont realmente capta o espirito nostálgico da história e não tem medo de voltar a um estilo mais antiquado de cinema. Um Sonho de Liberdade é fortemente influenciado pelos velhos filmes de prisão, e não tem medo de usar os clichês desse subgênero: os guardas são sádicos, o diretor é impiedoso e frio, e a partir de determinado ponto da história um plano de fuga passa a mover a narrativa. O filme até faz uma clara homenagem a um dos maiores exemplares do tipo, o belo O Homem de Alcatraz (1962), no qual Burt Lancaster é um prisioneiro que cria pássaros. O velhinho Brooks, interpretado em Um Sonho de Liberdade pelo veterano James Whitmore, também tem um pássaro de estimação.

No entanto, esse aspecto antiquado esconde algumas surpresas na narrativa. É curiosa a forma como o personagem Dufresne é construído e apresentado ao espectador. Passamos a maior parte do filme sem realmente saber se ele é culpado do crime pelo qual foi condenado, ou se é inocente – só descobrimos ao certo do meio para o final da história. Isso dá um toque levemente perturbador à história, mas no fim das contas isso beneficia nossa conexão com o personagem. Darabont e Robbins despertam nossa empatia por Dufresne através da nossa humanidade. Relacionamo-nos com ele sem saber se ele é ou não assassino, apenas como um ser humano jogado naquela situação.

Apesar de tudo que experimenta em Shawshank, Dufresne se recusa a deixar que tudo na sua vida se transforme em pedra, poeira e na cor cinza predominante na prisão. A esperança com a qual Um Sonho de Liberdade conquista o publico é ainda mais comovente porque provém de um lugar muito escuro. Assim, momentos como aquele no qual Dufresne consegue fazer com que os prisioneiros escutem música no pátio adquirem uma característica quase mágica. Como o ambiente opressor do filme é perfeitamente estabelecido, as pequenas vitórias dos personagens parecem maiores, mais comoventes e belas.

O filme estabelece seu universo através do excepcional trabalho de direção de arte e figurinos, drenados de praticamente todas as cores, a não ser o cinza e os tons de terra predominantes na prisão. E o compositor Thomas Newman tem em Um Sonho de Liberdade um dos melhores trabalhos da sua carreira. Sua trilha sonora consegue ser comovente em alguns momentos, sinistra em outros, mas nunca chama excessivamente a atenção, a não ser em momentos-chave da história. É um filme de pequenas emoções (como na bela sequência do personagem Brooks após ser libertado), apoiado por uma bela e pequena trilha. E aproveitando a deixa da história de King, Darabont ainda inclui no filme momentos de homenagem ao cinema – cenas do clássico Gilda (1948) e pôsters de atrizes famosas fazem referência a grandes filmes do passado, além de situarem o espectador no tempo, pois afinal a história abrange quase 20 anos.

Também merecem destaque os atores do filme. Todos estão absolutamente perfeitos, dos papeis pequenos – Clancy Brown como o guarda violento e Bob Gunton como o diretor da prisão até aparecem pouco, mas ninguém os esquece – até os principais. Os desempenhos de Robbins e Freeman aqui se situam entre os melhores das suas carreiras. Ambos atuam de forma contida: Robbins transmite a inteligência e a natureza sensível de Dufresne, enquanto Freeman expõe a natureza conformada de Red. Um conformismo, contudo, que esconde um anseio por algo melhor…

Quando foi lançado em 1994, quase ninguém viu Um Sonho de Liberdade. O filme foi salvo realmente pelo Oscar: Teve 7 indicações, incluindo Melhor Filme, Roteiro Adaptado e Ator para Freeman. É para isso que as premiações realmente servem, para nos fazer prestar atenção em obras que poderiam passar despercebidas injustamente, e nesse caso só podemos agradecer à Academia. Naquele ano a disputa foi polarizada entre o popular e cativante Forrest Gump, O Contador de Histórias (1994) de Robert Zemeckis, e a obra-prima alucinada Pulp Fiction: Tempo de Violência (1994) de Quentin Tarantino. Um Sonho de Liberdade não ganhou nada, mas foi um dos vencedores da noite.

Subitamente, as pessoas começaram a prestar atenção nele e a vê-lo em vídeo e na TV. E assim nasceu o culto a uma obra capaz de inspirar as pessoas, não de forma piegas e manipuladora, mas com sinceridade, com bons e cativantes personagens, e uma mensagem de esperança que não envelhece. Um Sonho de Liberdade pode não ser inovador ou revolucionário, mas nem por isso deixa de ser um grande filme.

Nota: 9,0