“Esqueça, Jake, é Chinatown” se tornou uma das frases mais conhecidas e lembradas do cinema por representar aquele tipo de situação onde tudo dá invariavelmente errado, e nada resta a não ser aceitar. É a última fala dita no filme Chinatown e resume o filme, um dos grandes representantes do movimento que se convencionou chamar de “Nova Hollywood”, que revigorou o cinema americano a partir do final dos anos 1960 e por toda a década de 1970. O filme permanece um clássico porque, embora ele contenha elementos de outros filmes, a mistura acabou resultando numa obra única, inesquecível pelo seu pessimismo, pela sua visão crítica da sociedade americana… e também por ser um dos melhores e mais bem urdidos suspenses já produzidos em Hollywood.

Em meados dos anos 1960 Hollywood estava em crise. Os estúdios estavam mal das pernas, os filmes não se comunicavam com o público e, fora algum ocasional sucesso, as bilheterias estavam em baixa. Nesse cenário, um bando de cineastas, produtores e atores, jovens e cheios de energia, começaram a fazer filmes que se voltaram para a contracultura, como Easy Rider: Sem Destino (1969), ou rompiam tabus, como Bonnie e Clyde: Uma Rajada de Balas (1967). Foi a época em que surgiram diretores como Robert Altman, William Friedkin, Peter Bogdanovich, Brian De Palma, Francis Ford Coppola, Hal Ashby, Terrence Malick, George Lucas, Steven Spielberg e Martin Scorsese.

Chinatown, por sua vez, foi dirigido por um europeu, o polonês Roman Polanski, que na segunda metade dos anos 1960 era um dos nomes mais quentes do mundo do cinema. Chinatown era um projeto do roteirista Robert Towne e do astro Jack Nicholson, e foi o chefão do estúdio Paramount na época, Robert Evans, quem trouxe Polanski para dirigir o filme. O cineasta já havia realizado para a Paramount, anos antes, o sucesso O Bebê de Rosemary (1968). Mas Polanski sempre foi um homem marcado pelas tragédias em sua vida. Na infância, perdeu a mãe na Segunda Guerra Mundial – ela foi enviada para o campo de concentração de Auschwitz – e passou fome na Polônia ocupada até reencontrar seu pai após o fim da guerra. Em 1969, quando tudo estava bem na sua carreira, a esposa de Polanski, a atriz Sharon Tate, foi assassinada junto com outros convidados de uma festa pelos seguidores do maníaco Charles Manson. Depois dessa tragédia, Polanski abandonou os Estados Unidos, e só retornou ao país para rodar Chinatown.

Na verdade, Chinatown era um filme revisionista, retomando a velha tradição do filme noir. Esse é o termo que designa o conjunto de filmes americanos produzidos a partir da década de 1940, obras sobre o crime, fotografadas em preto e branco e dominadas pelo cinismo e pela ressaca moral da Segunda Guerra. Eram filmes com detetives durões, investigadores cínicos, mulheres fatais e tramas mirabolantes, e deixaram suas marcas não apenas na filmografia americana, mas também mundial – afinal, vários títulos do cinema noir ainda se situam dentre as melhores obras cinematográficas já produzidas.

A ideia por trás de Chinatown era recriar esse tipo de filme, mas não de uma maneira simplesmente referencial. Polanski e Towne queriam recriar o estilo, e depois transcendê-lo. Trata-se de um noir colorido e iluminado pelo sol de Los Angeles, enquanto os antigos eram todos em preto-e-branco. A fotografia iluminada e rica de John A. Alonzo cria um contraste entre a beleza das imagens e a feiura dos acontecimentos da história – além disso, sombras também são usadas em momentos cruciais, assim como nos antigos filmes noir. Além disso, é um filme com uma sensibilidade tipicamente anos 1970 e reflete o cinismo pós-Guerra do Vietnã e as tensões políticas sentidas na época. É um filme sobre como Los Angeles foi construída – com corrupção e assassinatos – e, por conseguinte, os Estados Unidos. E de fato, Chinatown acaba sendo a maior recriação moderna do noir – desde então apenas o oscarizado Los Angeles: Cidade Proibida (1997) chegou perto, mas ainda perde em comparação com o filme de Polanski.

A história se passa nos anos 1930 e, como de praxe nos filmes noir, começa com uma mulher contratando um detetive para uma investigação. J. J. Gittes (interpretado por Nicholson) é contratado para seguir Hollis Mulwray (Darrell Zwerling), o chefe da companhia de Águas e Energia de Los Angeles, pois a sua esposa suspeita de traição. Não demora muito e Mulwray é encontrado morto, e Gittes conhece a verdadeira esposa dele, Evelyn (Faye Dunaway). Mas ela não é a mesma mulher que contratou Gittes, e o detetive logo se vê metido numa trama que envolve o abastecimento de água para a cidade, um negócio milionário no qual pode estar envolvido o misterioso Noah Cross (John Huston). Ah, além disso, Evelyn é uma mulher que esconde um terrível segredo…

Polanski inicia o filme pelo ponto de vista de um cliente de Gittes enquanto este vê fotos em preto-e-branco da sua esposa transando com outro sujeito. Ao passar para o universo colorido do filme, é como se Chinatown deixasse para trás as restrições dos filmes noir – na época em que foram produzidos, seus realizadores enfrentavam o controle do Código Hays, o escritório da censura cujas diretrizes diziam o que podia ou não ser mostrado no cinema americano. Os cineastas responsáveis pelos filmes noir tinham de inventar modos criativos para fazer o publico intuir os momentos de sexo e violência inerentes às suas histórias, mas que não podiam ser explicitamente mostrados.

Chinatown não teve esse problema, e como tal, não se acanha em deixar claras a violência e a sexualidade da história – aliás, o verdadeiro mistério da trama envolve um tabu sexual cuja força não diminuiu com o tempo e permanece chocante ainda hoje. Porém, é interessante notar como o filme subverte as expectativas do noir. A trama é complexa, mas Polanski – que trabalhou junto a Towne para cortar alguns excessos do roteiro e torná-lo mais compreensível – tem total controle sobre ela e não deixa o espectador se perder. Além disso, usa o humor para tornar interessantes momentos de exposição, como quando Gittes irrita a secretária de um personagem ou na cena do cartório. É também um filme no qual não se pode confiar nas aparências. Evelyn, embora a princípio aparente ser a típica femme fatale do noir, acaba se revelando ao longo da história como a verdadeira heroína.

A atuação nervosa de Faye Dunaway – que, segundo relatos, teve conflitos com o diretor – torna a personagem marcante e inesquecível. Já Nicholson estava, nessa época, no auge do seu charme e carisma de astro, e conduz a narrativa com facilidade. E na melhor tradição dos temas de Polanski, Gittes é um herói perdido em meio a um mundo hostil. Ele pensa que sabe muito, e isso acaba sendo a sua ruína. Outros destaques do elenco são o próprio Roman Polanski, no papel do bandido que corta o nariz de Gittes, e o diretor John Huston, realizador de um dos maiores filmes noir de todos os tempos, O Falcão Maltês: Relíquia Macabra (1941). Huston faz de Noah Cross um dos maiores vilões da história do cinema. A sua dicção, sua linguagem corporal e algumas das suas falas o transformam numa figura de pesadelo, especialmente no final do filme.

Por exemplo, Cross diz que, “dependendo das circunstâncias, as pessoas são capazes de tudo”. Isso fica claro no inesquecível e sombrio final, idealizado por Polanski – o diretor teve de bater o pé junto a Evans e Towne para manter o final. É como se, no desfecho de Chinatown, Polanski deixasse clara a sua visão do país onde ele experimentou uma das maiores tragédias da sua vida. Sua visão fatalista é que torna o filme difícil de esquecer: será que alguém se lembraria de Chinatown, 40 anos depois, se um final feliz artificial tivesse sido inserido à força na história? Nos velhos filmes noir, apesar de todo o cinismo, na maioria das vezes aqueles do lado errado da lei terminavam sendo punidos. Em Chinatown não: Polanski e Towne levaram o estilo à sua conclusão lógica, a qual ela nem sempre podia chegar antes.

O desfecho de Chinatown é como a representação cinematográfica da Lei de Murphy: o que pode dar errado, dá. Mas colocar o seu niilismo apenas na conta das tragédias da vida de Roman Polanski reduz o filme, e ele não pode ser reduzido. Acima de tudo, é espantoso como o diretor fez desse filme algo também muito divertido e envolvente. É muito difícil largar Chinatown depois que se começa a assisti-lo, e sua trama e seus mistérios continuam entretendo e fascinando espectadores. É um filme de contrastes: beleza e feiura, glamour e baixeza, estilização e realidade. E repleto de detalhes e de falas memoráveis – alguns diálogos de Gittes fazem o publico rir com facilidade. Talvez daí venha o seu encanto: muito sombrio e muito divertido, Chinatown parece uma daquelas mulheres fatais do cinema noir, bonita, sensual e irresistível, mas escondendo a promessa de algo terrível dentro de si.