Os Inocentes completa este ano 45 anos. É um senhor filme e mesmo não recebendo o devido reconhecimento por parte do grande público, carrega a marca de cult. Ele faz parte de uma década significativa e representativa ao cinema de horror, principalmente ao subgênero gótico e psicológico que surgiu neste período: dos clássicos Psicose e Os Pássaros de Alfred Hitchcock; as obras-primas de Mario Bava como A Máscara do Demônio e As Três Máscaras do Terror. Sem contar A Noite dos Mortos-Vivos de George Romero, O Bebê de Rosemary de Roman Polanski e Desafio do Além de Robert Wise, este último por sinal, guarda boas semelhanças com o trabalho de Clayton já que ambos são produções sobre fantasmas.

O que faz de Os Inocentes até hoje ser um diferencial dentro do horror? O primeiro é o monumental texto de Henry James, A Volta do Parafuso publicado em 1898 e adaptado pelo genial escritor literário Truman Capote e o roterista William Archibald, eterno colaborador dos filmes de Hitchcock. O segundo ponto é a direção do jovem cineasta Jack Clayton – na época tinha apenas 30 anos – detalhista em captar a atmosfera soturna que recorre a recursos técnicos suaves e leves para encenar seu horror psicológico. São os dois elementos que dão o tom sinistro, estético e soturno ao filme, permitindo que sobreviva até hoje como uma entidade sobrenatural no imaginário cinéfilo dos fãs de terror.

Nele, uma jovem governanta Miss Giddens (Deborah Kerr em sua melhor atuação da carreira) é contratada para cuidar de dois órfãos por um Lord inglês (Michael Redgrave, em atuação pequena, mas marcante). Ela viaja para magnífica residência vitoriana de campo onde vivem as duas crianças e inicialmente fica encantada com Flora e Miles (interpretados com uma ambivalência notável pelos prodígios Pamela Franklin e Martin Stephens), mas percebe que há algo errado na conduta dos pequenos que podem estar ligados a fatos perturbadores do passado da moradia.

A própria abertura, com um fundo negro assumindo a tela – antes mesmo do símbolo da Twentieth Century-Fox aparecer nos créditos – enquanto a canção fúnebre de Paul DehnThe Willow Wally” é cantarolada sob uma voz infantil suave, já oferece a primeira dica do mistério que envolverá o filme. Os versos “nós deitamos meu amor e eu sob o salgueiro-chorão/ mas agora deito apenas eu e choro ao lado da árvoredenotam que o terror é tangente na leveza e sutileza das palavras e habita o significado oculto da obra. Clayton neste aspecto insinua que Os Inocentes é uma história delineada pelas sugestões, naquilo que não é explicitado, apenas sugerido precisando desta maneira, interpretar os vários simbolismos jogados dentro do texto.

O sentimento de perda que impregna o filme desde o início impulsiona os personagens para os espaços situados entre a realidade e o imaginário, sendo internalizados de forma lenta pelo público a partir da atmosfera aterrorizante. Neste sentido, a temática crucial do filme envolve dois elementos que caminham juntos e aprofundam os simbolismos da obra. O primeiro é a perda da inocência cujas implicações na produção referem-se mais aos aspectos emocionais do que propriamente físicos.  Nela, há sempre o temor de ser corrompido pela ausência do valor moral mais integro, no caso dos garotos, os comportamentos um tanto quanto “estranhos” para crianças – que reproduzem características adultas – como olhares, brincadeiras erotizadas e a sedução do jovem Miles para Giddens que a deixa amedrontada. Porém, a governanta vai apresentando o seu próprio rito de perda da inocência ao se deixar levar pelos seus desejos, de ser “corrompida” pelas suas emoções.

Neste ponto vale destacar o detalhismo técnico como Clayton posiciona a personagem geralmente ao lado de colunas ou então menor perante os objetos que aparecem no casarão indicando seu sufocamento e aprisionamento perante suas emoções e desejos. O cuidado inicial de Giddens em relação os garotos sai da zona do normal adquirindo traços de uma obsessão que apontam para o afeto excessivo em razão da sua fragmentação emocional “Amo as crianças mais que tudo” diz ela em certo momento.

Aqui temos o primeiro questionamento do filme: Afinal quem são os Inocentes? Miles e Flora ou Mr.Giddens? Qual deles foi realmente corrompido?É dentro deste mote relacionado adulto e crianças que o filme direciona o público para o seu segundo elemento fundamental: o viés sexual como tônica. Se a preocupação de um adulto normal está relacionada à erotização das crianças dentro do contexto – o indicativo da perda da inocência – é fato que Os Inocentes explora a dicotomia desta relação dentro do seu texto de forma ambígua. Isso reflete na relação estranha de Mr.Giddens e Miles, mostrada pelo filme de forma corajosa. A cena em que Miles beija Srta. Giddens na boca evidencia a clara tensão sexual que o texto até então ofereceu nas entrelinhas.

O romance de Henry James se passa na época vitoriana e não podemos deixar de lembrar o quanto este período foi marcado por uma forte repressão sexual. Clayton sabendo disso brinca com o público desenvolvendo esta ambiguidade na história e levando a outra reflexão: o que é real e o que é subjetivo? Existem fantasmas realmente? Eles estão corrompendo a pureza das crianças? Será que Mr.Giddens é uma pessoa reprimida sexualmente que direciona seus desejos e os materializa na forma de fantasmas? No fundo estes não passam de um produto de uma representação neurótica oriunda da imaginação da era vitoriana reprimida? Há muito mais perguntas do que resposta neste aspecto, deixando que o público abrace qual ponto de vista prefira.

O curioso que estas pistas sobre a repressão sexual são apresentadas em diálogos simples – quando o Tio dos garotos pergunta para a governanta na entrevista se ela é uma mulher de imaginação – ou nos elementos dos cenários: as flores que murcham, cortinas que batem na janela, sons estranhos que sugerem um ato sexual – me ame, me ame, escuta a governanta em certo momento – são vários indícios da sugestão sexual. A degradação psicológica da personagem também é vista na sua composição: ela começa o filme utilizando vestidos brancos que reproduzem sua inocência e perto do final assume a vestimenta preta indicativa da sua instabilidade emocional, que por sinal lembra os mesmos trajes do fantasma da mulher de preto que ela sempre enxerga no lago.

Este texto impecável ganha uma perfeita cinematografia nas mãos de Clayton que o encaixa a precisa simetria visual, sem precisar utilizar os jumpscares habituais, efeitos especiais, a montagem caótica e a música barulhenta, comuns no cinema de hoje. Os Inocentes provoca o medo através da sua atmosfera sólida de horror que é inventiva. A dama do cinema inglês Deborah Kerr esta magnífica, com uma atuação imperceptível como aquela que apoia-se na questão do olhar que esconde uma emoção interna contida e diz muito mais do que palavras. Uma atuação sem qualquer cacoete e mais centrada na dramaturgia. Já as duas crianças não ficam atrás, mas o destaque é Martin Stephens cujo monólogo macabro no espetáculo teatral é assustador. O ator também interpretou outra criança maligna em A Aldeia dos Amaldiçoados (1960).

Portanto, Os Inocentes apresenta na sua essência uma complexidade, rara de se encontrar hoje: Você pode aceitá-lo como um filme sobrenatural de fantasmas e neste aspecto, ele funciona muito bem pela sua atmosfera assustadora, impactante e de ótimos sustos. Porém, você pode abraçá-lo na sua outra vertente como um suspense psicológico carregado de metáforas que insinuam nas entrelinhas, temáticas como a repressão sexual, desejos reprimidos, comportamentos maliciosos e perversos.

Neste, o universo infantil é habitado por monstros, ambiguidades e invasões. Pessoalmente, a jornada de Giddens indica tanto um processo de luta para proteger a inocência infantil do possível “abuso sexual” de um “fantasma” quanto a representação de um processo emocional conflituoso de uma pessoa que não consegue realizar seus desejos sexuais reprimidos que insistem por sua vez, retornarem sob a forma de aparições. Você decide qual dos dois enredos deve se sobrepor um sobre o outro: o psicológico ou sobrenatural. Uma coisa é certa: independente da escolha, Os Inocentes vai permitir você ter acesso de qualidade a uma das emoções mais antigas da humanidade, o medo.