“8 ½”, dirigido pelo italiano Federico Fellini, é um daqueles raros filmes que, de certa forma, esvaziam o sentido do trabalho do crítico. Na literatura dedicada ao desenvolvimento da crítica cinematográfica e a análise fílmica, o desafio de pôr em palavras o que é primeiramente expresso dentro de um sistema audiovisual é citado por vários autores, e esse desafio é muito bem expresso ao se escrever sobre “8 ½”, tamanho o sucesso da junção de técnica e a sensibilidade.

Não por acaso, “8 ½” vem influenciando realizadores há cinco décadas, além de ter transformado Fellini quase que num gênero cinematográfico em si. Por isso, o post de hoje no Cine Set é mais um comentário em homenagem aos 50 anos do filme, completados em 2013, e menos uma resenha; já parte do princípio de que todo amante do cinema tem a obrigação moral de ver “8 ½”!

Contam os biógrafos que, enquanto filmava “8 ½”, Fellini mantinha um bilhete preso na câmera onde se lia: “lembre-se, esse filme é uma comédia”. Nessa nota nasceu a primeira grande qualidade do filme, uma vez que ele lida com questões existenciais que, de maneira geral, são universais. Tal qualidade é o humor e a leveza, que convida e cativa o público mesmo quando o tema parece infilmável e segue uma narrativa nada convencional.

Na trama, o diretor de cinema Guido Anselmi (Marcello Mastroianni) enfrenta dificuldades para resolver os problemas na produção de seu mais novo filme, de caráter autobiográfico, o que é apenas um reflexo do que enfrenta em sua vida pessoal. Perdido, ele não sabe como será o filme e sofre pressões por parte de toda a equipe enquanto se perde em devaneios, lembranças do passado e fantasias em busca de respostas para como criar um filme “verdadeiro”.

A confusão por que passa Guido é expressa sempre de maneira tragicômica, especialmente quanto ele mistura a realidade e suas lembranças da infância, distorcidas pela memória. Talvez por isso as figuras que o rodeiam são caricatas: há o produtor controlador, a atriz “profunda” obcecada em saber todas as nuances da personagem que supostamente interpretará, o crítico que questiona o filme de Guido tal como o espectador questiona o próprio “8 ½”, e, claro, há as mulheres mágicas de Fellini.

Os papeis femininos são o que dão sentimento ao universo de Guido, perdido nas raízes de seus traumas infantis. Enquanto que hoje o cinema tem uma verdadeira obsessão por “lolitas”, “8 ½” brinda o público com mulheres voluptuosas, maduras e, mesmo em papeis secundários, de personalidade bem delineada dentro do universo e proposições do filme, o que contrasta com a imaturidade de Guido e com a própria postura um tanto misógina no trato de Fellini com suas personagens femininas ao longo de sua carreira. Nesse sentido, vê-las como caricaturas funciona como um atestado da incapacidade de compreendê-las e mesmo ama-las, num apontamento autocrítico que perpassa muitos momentos do filme.

Assim conhecemos a alegre e vulgar Carla (Sandra Milo), amante de Guido, sempre preocupada com o próprio marido; Saraghina (Eddra Gale), a louca que permeia suas lembranças da infância; Gloria (Barbara Steele), a estranha noiva de seu amigo; Luisa (Anouk Aimée), a esposa de Guido, prestes a pedir o divórcio; Rosella (Rosella Falk), a amiga de Luisa que sempre questiona Guido por suas atitudes; e Claudia (Claudio Cardinale), a atriz e “mulher perfeita” que Guido espera salvar o filme.

A metalinguagem atingida por Fellini com “8 ½” é outro ponto digno de nota. A ideia base de um diretor que esquecera o tema de seu próprio filme realmente aconteceu com Fellini (ele era conhecido por não trabalhar com roteiros finalizados). Vários dos personagens foram inspirados em figuras reais, incluindo aí a amante Carla. Mastroianni, por sua vez, emulou os trejeitos do diretor e parece absurdamente à vontade dentro daquele universo em que passado, presente e mentira se misturam. Além disso, muitas das lembranças de infância de Guido são do próprio Fellini e reaparecem em outros filmes do italiano.

Em nível técnico, impossível não destacar o cuidado com a trilha sonora e a direção de fotografia. A música tema é um trabalho primoroso de Nino Rota, o “pai” de algumas das trilhas mais impactantes do cinema mundial (“O poderoso chefão”, “Amacord”, “Romeu e Julieta”, dentre outras). Já a direção de fotografia de Gianni Di Venanzo, aliada à edição de Leo Cattozzo, equilibra a sobriedade do preto e branco e o ar de sonho que os personagens ganham quando adentram no mundo de delírio de Guido, numa transformação por vezes súbita, marcada pela mudança de cenário, e em outros momentos sutil, delimitada por uma simples mudança na iluminação. A já antológica cena do “motim” no harém imaginário de Guido é um ótimo exemplo.

Paradoxalmente, a queda de Guido é o que elevou Fellini ao patamar de um dos melhores diretores de todos os tempos. Nessa construção metalinguística, a saga de um anti-herói que aprende a abraçar suas limitações e vence ao encarar o fato de que não era tão genial como todos pensavam é o ponto alto da filmografia de Fellini e, de quebra, um dos filmes que melhor expõem a paixão que envolve aqueles que se dedicam a fazer filmes.