Em um artigo chamado “Kubrickland”, o crítico de cinema Amir Labaki comenta que “um filme de Stanley Kubrick carrega sempre um paradoxo: imediatamente reconhecível como dele, jamais repete a experiência das obras anteriores”. Afinal de contas, apesar da relativamente curta filmografia em 49 anos de atividades, Kubrick conseguiu passar por diferentes gêneros cinematográficos como poucos, sendo sempre bem-sucedido: desde o épico de guerra em Glória Feita de Sangue ao filme de terror em O Iluminado e a ficção científica em 2001: Uma Odisseia no Espaço. A intensidade de cada uma dessas obras só reforça os superlativos que lhe são atribuídos como um dos mais geniais diretores da história do cinema.

Não seria diferente em sua experiência na comédia, com Dr. Fantástico (Dr. Strangelove or: How I Learned to Stop Worrying and Love the Bomb, 1964). Em plena Guerra Fria, Kubrick conduz um filme que satiriza a paranoia nuclear da época, o militarismo e as decisões de líderes mundiais obviamente despreparados para os cargos que ocupam. Partindo do livro Red Alert, de Peter George, como inspiração, o roteiro do próprio Kubrick em parceria com Terry Southern desvirtua completamente o tom de suspense e ação da obra original para construir sua comédia política.

Acompanhamos três histórias paralelas durante o filme: numa delas, o paranoico General Jack Ripper ordena sem autorização um ataque nuclear à União Soviética, a fim de manter sua essência e a “pureza de seus fluidos corporais”, uma vez que, segundo ele, a ameaça comunista está se infiltrando através da fluoretação da água (!). Enquanto isso, ciente do ataque iminente, o presidente dos Estados Unidos se reúne com seus conselheiros, oficiais das Forças Armadas e o embaixador russo na Sala de Guerra, na tentativa de evitar o apocalipse nuclear. Ao mesmo tempo, vemos a tripulação de um dos aviões B-52, comandada pelo Major T.J. “King” Kong, prestes a lançar suas bombas em território russo.

O que chama a atenção em Dr. Fantástico é, logo de cara, as atuações, sem as quais o filme certamente não seria metade do que é. Peter Sellers, que já havia trabalhado com Kubrick em Lolita, aqui encarna três papéis completamente diferentes com a mesma competência: o capitão Lionel Mandrake, que tenta convencer o General Ripper a lhe passar a única senha que pode evitar o ataque; o presidente americano Merkin Muffley; e o Dr. Strangelove do título, a figura bizarra de um cientista ex-nazista que constantemente chama o presidente de “Mein Führer” e possibilita que Sellers explore seu humor físico com uma mão alienígena que insiste em fazer a saudação de Hitler. O ator ainda estava cotado também para fazer o papel do Major Kong, mas não se sentiu confortável ao tentar acertar o sotaque texano do personagem, que acabou nas mãos de Slim Pickens, saído diretamente de filmes de faroeste. Pickens era o próprio Major Kong em vida, e Kubrick inclusive decidiu não contar a ele que o filme era uma comédia, para que ele levasse a sério o papel.

Além da atuação tripla inspirada de Sellers, o trabalho de Pickens e a igualmente excelente interpretação de Sterling Hayden como o tresloucado General Ripper, não há como tirar os olhos de George C. Scott, que se sobressai na pele do General Buck Turgidson. Exagerando propositalmente nas expressões faciais, caretas e linguagem corporal, Scott convence porque constrói o personagem tão naturalmente que suas reações se tornam críveis e, portanto, mais engraçadas, como se o General Turgidson tentasse ser sério e não tivesse consciência do quanto caminha na contramão disso. A decisão de Kubrick de usar vários takes de ensaios do ator na versão final do filme – o que causou posteriormente uma briga entre os dois – permitiu que até mesmo uma queda não planejada em cena ficasse na versão final do filme, tamanho o talento de Scott em contornar um imprevisto e fazer daquilo algo orgânico.

E é com essa mesma seriedade que Kubrick conduz o filme, com seu apuro visual de costume, mas revelando um timing cômico impecável que se dá através de um humor anárquico presente no roteiro, na montagem paralela e em uma série de piadas visuais, como na abertura que nos introduz aos aviões acoplados como falos ao som de uma trilha sonora romântica. Símbolos fálicos, aliás, estão por toda parte, seja nos charutos que o General Ripper fuma em evidência, nos mísseis, nas armas, ou na cena icônica em que o Major Kong, usando um chapéu de caubói, cavalga um míssil atômico em direção a seu destino. A ironia também é presente em cenas como a invasão a uma base militar, em meio a enormes outdoors que anunciam “Paz é a nossa profissão”, ou em diálogos como o famoso “Vocês não podem brigar aqui! Esta é a Sala de Guerra!”.

Kubrick também consegue gerar o riso simplesmente através das reações de seus personagens a determinadas situações, como as caretas do General Turgidson na Sala de Guerra ou a conversa ao telefone entre o presidente Merkin e o premier russo, em que um ataque nuclear é tratado quase como uma questão de etiqueta, uma vez que o embriagado líder soviético parece estar magoado com o fato do presidente apenas lhe telefonar em momentos desagradáveis. “É claro que eu gosto de conversar com você, Dimitri!”, justifica um Merkin visivelmente sério. Em um de seus textos, o saudoso crítico Roger Ebert observava que pessoas tentando ser engraçadas nunca são tão engraçadas quanto pessoas tentando ser sérias e falhando. Nesse sentido, Kubrick não perde a oportunidade de ridicularizar todas as situações, satirizando inclusive ambos os polos militares através das percepções estereotipadas de ambos: o que dizer do General Ripper que acredita piamente que comunistas não bebem água, mas apenas vodca? Ou o militar americano que se recusa a atirar numa máquina de refrigerante porque se trata de uma propriedade privada da Coca-Cola?

É através de todos esses elementos que Kubrick trata de um tema recorrente em sua filmografia, a guerra (vista antes em Glória Feita de Sangue e, depois, em Nascido para Matar) e expõe mais uma vez os seus absurdos. Nesse caso, ele faz do riso sua principal arma, ridicularizando todo o contexto da época da Guerra Fria, e assim enfatizando um ponto que deveria ser óbvio: batalhas nucleares não dão em nada. E mesmo agora, a mensagem permanece tão atual quanto há cinquenta anos. Conforme Kubrick mostra, guerras são tão absurdas quanto homens reunidos em uma sala comparando os tamanhos de seus arsenais de mísseis. Uma sátira social que não fica velha nunca.

* Texto original alterado para substituir a equivocada expressão humor negro.