Eu sempre escutei de pessoas mais experiente, entre elas, pais e tios, o impacto emocional de assistirem certos clássicos no cinema pela primeira vez. Na minha andança cinéfila, eu passei por duas situações semelhantes: Quando vi Drácula de Bram Stoker (1992) de Coppola aos 12 anos no finado Cine Chaplin no centro de Manaus, ficando totalmente seduzido pelas cores e imagens proporcionadas pelo filme. A outra foi há quatro anos, em São Paulo, no Espaço Itaú quando assisti pela primeira vez (acreditem) a epopeia westerniana Era Uma Vez no Oeste, de Sergio Leone.

Desta vez, o sentimento foi de deslumbramento e encantamento, afinal, para entender o conto épico que é a carta de amor do seu cineasta ao gênero que sempre estimou, é preciso três ações: A primeira é apreciar todo o ritual de imagens milimetricamente ensaiadas pelo seu diretor dentro da sua valsa cinematográfica; A segunda é deixar as orelhas sintonizadas, afinal os efeitos sonoros, sons ambiente e trilha sonora do filme – uma fabulosa ópera de outro planeta de Ennio Morricone -, são também meios de se contar a sua história, criando antecipação dramática aos eventos e personagens; a terceira é ficar imerso e se deixar absorver por completo dentro da sua jornada sensorial, uma das melhores experiências audiovisuais realizadas pelo cinema.

Revê-lo, desta vez na tela pequena, neste ano em que completa 50 anos de existência, mostra que Era Uma Vez no Oeste é uma obra incrivelmente impecável, que comprova sua atemporalidade, por mostrar de forma consistente, que Leone criou uma linguagem cinemática própria, de fazer um filme sobre filmes, ao mesmo tão diferente na essência quando comparado a outros da mesma década, revolucionando assim, a sétima arte.

 Digo isso, porque além de aperfeiçoar a roda propulsora do faroeste, o elevando a um novo patamar – que pessoalmente será bem difícil outro cineasta alcançar nos próximos 50 anos – ele dimensionou o cinema na sua forma de estruturar épicos, determinando a imagem como identidade de espaço, a ação como forma de tempo e a narrativa que rompe com as características tradicionalistas do subgênero, para irromper na subversão e reconstrução da própria identidade do western americano.

Era Uma Vez é o tipo de joia cinematográfica lapidada por Leone e sem dúvida, um diamante para rivalizar com O Poderoso Chefão (1972) e Cidadão Kane (1941). De uma história que parte de um trio de malfeitores esperando o trem numa ferrovia do Oeste Americano, o forasteiro “Harmônica” (Charles Bronson) se junta à viúva Jill McBain (Claudia Cardinale) e ao fora da lei Cheyenne (Jason Robards) para impedir os planos do assassino ganancioso Frank (Henry Fonda), ligados à construção de uma ferrovia que atravessará a região. É neste mote, que Leone estrutura seu imortal longa e o coloca à serviço do fazer artístico.

 Como homenagear e subverter gêneros ao mesmo tempo

Leone antes de fazer Era Uma Vez já tinha transformado o faroeste em um entretenimento diferenciado com a Trilogia dos Dólares com Clint Eastwood. Rompendo os laços com o idealismo romântico dos Cowboys de Ford, o cineasta criou na Itália os faroestes Spaghetti através da violência e amoralidade, estabelecendo uma linha tênue entre herói e bandido.

O mais interessante é que Leone não esqueceu de homenagear clássicos tradicionais como Rastros de Ódio e Matar ou Morrer ao pegar emprestado os princípios da vingança e da lei. No primeiro, a vingança que consome Harmonica é a mesma que move o cowboy de Wayne, enquanto no segundo, a narrativa moral sobre a lei é construída na estrutura principal em Era Uma Vez. A partir da referência, Leone aos poucos vai desconstruindo e ressignificando o mito do cowboy através de olhares precisos. Do humor, cria uma sátira sutil a sua figura emblemática – a clássica cena de resgate dentro do trem reflete isso. Transgride os modelos de narrativas convencionais do gênero, ao apresentar três começos diferente nos 45 minutos iniciais do filme, com intuito inovador de apresentar seus personagens e quebrar as expectativas do público. Por fim, subverte as ideias ao utilizar o som como elemento vital para causar impacto emocional no público .

Neste ponto, Era Uma Vez no Oeste realmente é uma obra transcendente por categorizar o western como filme épico, de mostrar a sua total maturidade em controlar as suas temáticas – do drama ao humor – e de extrair a essência dos clássicos americanos hollywoodianos existencialistas, mas sem jamais perder a alma visceralmente Spaghettiana elegante de Leone.

 A Forma e a Estética

Era Uma Vez no Oeste é na sua forma uma arquitetura barroca, revestido na sua estética em uma ópera trágica e passional. A imagem e todos elementos que fazem parte do quadro fílmico são para Leone, de suma importância. O italiano em seus filmes, fazia isso com uma precisão tão absurda, que transmitia a sensação, que fazer cinema é tão fácil, que qualquer um poderia fazer o mesmo.

O próprio filme é cheio de encenações poderosas e vivas, a começar pela antológica cena de abertura – 15 minutos inesquecíveis de aula cinematográfica – que mostra o quanto ele sabia retirar de quadro a quadro, o clímax da expectativa e da tensão, dentro do puro tédio de uma tarde qualquer do oeste americano, repleto de moscas, goteiras, barulhos de moinhos e o vento ao fundo. Além disso, Leone conciliava o fazer cinematográfico teórico (seus recursos técnicos) dentro da prática, por meio de planos memoráveis como o travelling da chegada de Jill na cidade, com a câmera subindo e dando a dimensão do belíssimo local. Ou o duelo final, entre Frank e Harmonica, que ganha um impacto emocional significativo junto ao espectador, através de um derradeiro flashback – um plano desconcertante que adentra pelos olhos de Bronson e joga o público literalmente na mente do seu pistoleiro – responsável pela última catarse do longa e de finalmente compreendermos a dinâmica de rivalidade entre ambos.

Tudo isso associado as excelentes transições de planos da fotografia imersiva e extasiante das vastas paisagens do oeste, capturadas pelo grande Tonino Dellicolli e o show de Ennio Morricone na composição de uma trilha sonora sensacional, que praticamente utiliza temas instrumentais para contar a jornada emocional dos seus personagens. Na sua forma e estética, a impressão é que o filme sintetiza o plano como unidade básica e eleva a linguagem como forma  de expressão e arte. Evidencia a sinfonia cheia de tesão de Leone pelas imagens.

 O Fim de um ciclo

Leone nunca escondeu nas suas entrevistas que seu filme do começo ao fim é uma dança da morte e que todos os envolvidos, exceto Jill, têm consciência que não chegarão vivos ao final. Era Uma Vez no Oeste simboliza uma fábula triste, da chegada da prosperidade e do progresso. Temos uma releitura às avessas do Oeste Selvagem, na qual as identidades dos bandidos dos faroestes clássicos e o seu senso moral, já não têm mais lugar na nova sociedade, modernizada e estruturada com a chegada dos trilhos do trem, domesticado pelo capitalismo, sem espaço para o mítico do Velho Oeste.

O roteiro escrito ainda pelos jovens cineastas Bernardo Bertolucci e Dario Argento reproduz bem o contexto verdadeiramente político social violento que a década de 60 vivia – As mortes de Martin Luther King e Robert F. Kennedy evidenciava o olhar metalinguístico dentro do filme sobre o efeito destruidor do tempo no ambiente  –  e a dificuldade das pessoas de se adaptarem às mudanças culturais que aconteciam no mundo. Por isso, o filme é uma ópera contemplativa sobre violência e vingança que sinaliza a melancolia e pessimismo de seus anti-heróis masculinos.

Este sentimento lúgubre, também é sentido pelo espectador, fora do filme: simboliza o fim de uma era para o cinema de faroeste, uma despedida que foge dos esquematismos dos clichês convencionais. A sensação é que Era Uma Vez no Oeste  é o ápice que o faroeste poderia atingir, o encerramento de um ciclo de vida e tudo que viria em seguida, seria uma espécie de novo começo – como se Leone apertasse o botão de reset para o gênero iniciar do zero, ainda que deixe uma mensagem de esperança ao seu sucessor, ao fechar sua última imagem sobre Jill e sua jornada de empoderamento feminino de sobrevivência e adaptação ao novo oeste que surge. O fato é que temos no filme, um monumento cinematográfico que sangra as expressões artísticas mais belas de um autor na sua melhor forma.