Caros leitores venho por este advogar em favor do filme “A Voz Suprema do Blues” de George C. Wolfe, baseado na obra do mestre August Wilson. O filme deixa um gosto amargo para quem assiste, mas percebo que para muitos ele envelheceu mal e ainda na época de seu lançamento, recebeu muitas críticas sobre sua condução. Sim, a produção encabeçada por Viola Davis e Chadwick Boseman, em seu último filme antes de nos deixar precocemente, não é um filme fácil. É denso, é pesado, é longo e toca em feridas que nunca foram cicatrizadas ao povo preto.

Assim, acho importante colocar aqui alguns pontos que são cruciais no contexto histórico e social que ele prega, tanto explícita quanto simbolicamente.

Certamente ele têm as suas falhas. Mas a grosso modo, está tudo ali: é um tornando de sentimentos que não latentes quanto dolorosos.

A linguagem teatral pode incomodar os corações menos sensíveis e atentos às causas retratadas, e eu entendo (pero no mucho!). São tantos simbolismos que resolvi colocá-los em alguns tópicos:

A influência de Ma Rainey na cultura negra daquele tempo: ela era a voz deles, as dores e aflições manifestadas em sua voz. Era a saída dos negros da realidade catastrófica, de uma vida miserável, imposta pela branquitude Coisas que só a arte pode fazer: a contemplação de um momento de diversão e paz. A música como válvula de escape e preencher esse sentimento de vazio (como no monólogo fortíssimo de Viola).

Isso nos leva ao segundo fator: a arte. Como se sabe, tudo foi negado aos negros, o processo civilizador colonizado negou, negligenciou e excluiu os negros de espaços. E a arte, viver dela, era uma utopia, um afronta dos negros em se igualar aos brancos, afinal, seus corpos foram subalternizados para estarem abaixo da pirâmide social. Protagonismo negro? Isso era impensável. Vemos no personagem de Chadwick, um jovem sonhador que quer viver de sua arte, mas a cultura do racismo não lhe deixa transpassar daquela zona. Os outros músicos gozam dele, mais uma representação do racismo estrutural nos próprios negros, pois a linha separatista é real.

Os sapatos! Ah, os sapatos. Os escravos não usavam sapatos. Por conta disso, é uma representação muito forte na cultura dos afrodescendentes norte-americanos a questão dos sapatos. Representa a emancipação. Pode parecer exagero para muitos, mas essa é a questão mais forte do filme. É o resgate de sua dignidade.

O deboche e personalidade forte de Ma não é nada senão a sua afirmação como mulher preta, lésbica e única aliada. Ela representa muitas mulheres pretas por aí ditas como baixas ou escandalosas, mas a dor é maior e a única forma de se proteger e manter a dignidade é sendo daquele jeito, autoritária.

O monólogo de Chadwick falando da mãe e de como se trata um homem branco. E cena de Deus? Sem palavras, pois está ali a síntese do que é ser negro em uma sociedade racista, genocida e que não se importa com corpos negros e suas narrativas.

A cena da porta. A branquitude nega acessos, até deixa uma brecha, a custo de muito esforço, mas quando passa por ela, as dificuldades ainda serão muitas. O muro representa tudo que vivemos ainda hoje. Quando se fala em ocupar espaços e emancipação, devemos compreender que essa murada é real. Negros escalam muros para sua própria sobrevivência, enquanto o privilégio branco deixa a janela e as portas abertas. O muro é a representação das dificuldades em ser e estar nessa sociedade. O filme se passa nos anos 1920 do século passado, mas seu extrato ainda é forte na década de 2020 do século XXI. Pois o racismo é legitimado.

Por fim, o Blues nasceu dos guetos, da cultura negra. Do som da dor, do lamento. O Blues nasce do manifesto preto. Mas a branquitude roubou e tornou algo autoral. Isso é mostrando diversas vezes ao longo do filme, seja em um outro monólogo fortíssimo de Viola acerca da voz dela que os brancos roubam para benefício próprio, seja no final do filme ou na forma como os empresários brancos usam de sua voz apenas para beneficio próprio.

É fundamental compreender esses tópicos para absorver o filme de uma maneira que não seja a abstrata. “A Voz Suprema do Blues” é um filme que fala de dor, do lamento cantado, de feridas agudas que não cicatrizam, pois sempre encontram maneiras de inflamá-las.

E Viola Davis e Chadwick Boseman, que forças da natureza. Talento preto e genuíno.