Na minha andança cinéfila já escutei muito que o cinema nacional de terror só produz besteiras, filmes ruins. Por mais que concorde que o gênero não apresente uma consistência regular de trabalhos significativos que o ajude a se destacar, isso não tira os seus méritos de oferecer obras sólidas e interessantes no circuito. No ano passado, na primeira edição do Especial de Terror do Cine Set, abordei no post O Expressivo Cinema de Horror Brasileiro a importância de “garimpar”, que requer a paciência em pesquisar sobre o cinema nacional e mergulhar fundo no seu mundo obscuro.

 Através da curiosidade, percebi que o horror sempre esteve presente no cinema brasileiro, inclusive antes do ciclo do cinema ousado de José Mojica Marins, o Zé do Caixão: do horror com elementos existencialistas e estilo barroco de Carlos Hugo Christensen e Walter Hugo Khouri as famosas produções da Boca do Lixo dirigidas por Jean Garret e Fauzi Mansur que trouxeram o terror sexual e agressivo. Sem contar, as divertidas paródias de monstros realizadas pelo mestre do terrir, Ivan Cardoso.

De acordo com os historiadores de cinema, o terror nacional completa 80 anos em 2016, a contar do lançamento do Jovem Tataravô (1936), considerado o primeiro exemplar com elementos do gênero. No post do ano passado, abordei cinco exemplares do mais diversos segmentos que considerava primordiais para uma “aventura introdutória” ao gênero para os marujos de primeira viagem. Esta lista de agora é para desbravar e descobrir cinco produções obscuras, que mesmo desconhecidas, deixaram boas contribuições ao cinema nacional. Boa Diversão.

  1. Enigma para demônios (1975) de Carlos Hugo Christensen

Dirigido pelo argentino Christensen radicado no Brasil, Enigma para demônios é um belo mergulho nas trevas que se aproveita da estética barroca para construir uma atmosfera de horror calcada nas sombras. Transforma a cidade de Ouro Preto, em Minas Gerais (a produção e história se passam lá) numa realidade fantasmagórica, onde sua arquitetura histórica – um marco do Brasil Colonial – assume feições sombrias. Uma jovem órfã que mora em Buenos Aires vai residir com os tios em Ouro Preto, para tomar posse de uma herança. Após visitar o túmulo da mãe, ela passa a receber telefonemas ameaçadores.

O apuro técnico de Christensen é fantástico, dando uma beleza rara ao filme, com o uso do zoom que busca as expressões dos atores – semelhante ao estilo de Antonioni e outros cineastas do cinema italiano – aproximando-se do cinema artesanal clássico e teatral. O texto é ousado por apostar em temas pesados como possessões demoníacas e magia negra. Vale fazer uma dobradinha com outro filme lançado pelo diretor na mesma década: A Mulher do Desejo (1977).

  1. Ninfas Diabólicas (1978) de John Doo

Filme que marcou a estreia do lendário John Doo, um dos mais prolíficos cineastas da Boca do Lixo – segmento nacional responsável em produzir diversas obras baratas associadas às temáticas de sexo, violência e pornochanchadas. Ursula (Aldine Muller) e Circe (Patrícia Scalvi) são duas jovens lindas caronistas que seduzem Rodrigo (Sérgio Hingst), pai de família a levá-las para uma praia deserta. Esse jogo de sedução vai levar o trio a comportamentos sexuais no local.

De certa maneira Ninfas Diabólicas não seduz apenas pela beleza de Aldine e Patrícia, duas musas do cinema erótico da época. Há também o enredo que caminha entre o surrealismo misterioso e o erotismo refinado. Diferente dos outros filmes realizados na Boca do Lixo por Doo, Ninfas é um belo exercício de estilo, um suspense psicológico com toques de horror surreal que mistura o teor sexual do espanhol Jesus Franco com a psicologia severa de Michael Haneke. Caso você se lembre do fraco Bata Antes de Entrar de Eli Roth em virtude das semelhanças entre os enredos, saiba que Ninfas é uma versão bem superior por trabalhar magistralmente o jogo de perversão. Daqueles filmes irônicos que você sente um prazer mórbido de assistir por se divertir com cada situação oferecida por ele.

  1. Força dos Sentidos (1980) de Jean Garret

Garret é sempre lembrado como o artesão da Boca do Lixo, alcunha que ajudou a criar um grande preconceito em relação ao seu cinema. Apesar do título brega, A Força dos Sentidos é uma ótima imersão ao horror lovecrafitiano, que mistura poesia e melancolia ao caráter lúgubre. O terror surge do ambiente fantástico criado a partir dos medos e ansiedades dos personagens. A história é bem simples: um escritor em bloqueio criativo vai parar uma ilha em busca de inspiração, só que nela vive uma situação surreal.

Há vários elementos que lembra o suspense sobrenatural – Os Inocentes de Jack Clayton vêm à mente – devido o terreno do fantasmagórico e da parapsicologia. O domínio técnico da mise en scène é notável por parte de Garret que mesmo trabalhando com orçamento precário, cria uma produção elegante que se assemelha a eficiência do espanhol Mario Bava em compor os cenários e imagens – vale destacar a bela fotografia do cineasta Carlos Reichenbach que compõe planos inusitados e travellings circulares. Merece ser conferido junto com outro trabalho do diretor, Excitação lançado três anos antes.

  1. Ritual Macabro (1991) de Fauzi Mansur

Realizado na década que o cinema nacional estava completamente falido (a era Collor), Ritual Macabro é uma das obras mais insanas que tive oportunidade de assistir do terror nacional, até pela diversidade de temas bizarros como delírios, sexo, zumbis canibais e rituais primitivos. Com seu estilo de filme B, Ritual diverte como as produções splatters italianas da década de 80 como Demons (1986).

Um grupo de teatro, durante ensaios sofre diversas mortes sangrentas, provocadas pelo fantasma de um pastor psicopata depois que este possui o corpo de um ator. Mansur faz um terror visceral onde não falta violência que se utiliza dos ótimos efeitos especiais – mesmo sendo uma produção pobre – e de ironia politicamente insano. Destaque para uma cena de sexo numa banheira, que envolve uma cabeça de bode decepada.

  1. Mangue Negro (2008) de Rodrigo Aragão

Não poderia faltar um exemplar nacional voltado ao subgênero de maior excelência do cinema de horror: os zumbis. Rodrigo Aragão, um dos cineastas mais promissores da safra atual do gênero nacional, cria um terror dos mais divertidos. Mangue Negro é uma mistura de produções americanas como Evil Dead (1981) e a Noite dos Mortos-Vivos (1968), sem jamais perder sua identidade regional, explorando o folclore nacional principalmente nas crenças e lendas.

No dia que Luiz, um humilde morador do mangue, cria coragem para se declarar a Rachel, a sua paixão, um apocalipse zumbi acomete região, adiando o romance do casal. A mistura de horror e humor funciona organicamente no esqueleto do filme. Aragão acerta a mão em relação ao ritmo da produção e faz um ótimo trabalho na concepção dos efeitos especiais que não fazem feio perante as grandes produções americanas. É o típico filme que serve para comprovar que a criatividade faz a diferença e que não estamos tão distante no quesito qualidade em relação ao cinema americano, mesmo com pouco recurso.

Bônus: Nervo Craniano Zero (2012) de Paulo Biscaia Filho

Se já é difícil realizar um filme de terror nacional, pense em produzir um que se utiliza de elementos de horror e ficção científica? Paulo Biscaia mostra que esta fórmula estranha adquire uma ótima vitalidade e imprevisibilidade narrativa que transforma Nervo Craniano Zero em uma divertida comédia de terror que brinca com os clichês dos dois gêneros com irreverência e boas doses de sarcasmo.

Com medo de uma possível crise criativa, uma escritora de sucesso utiliza um chip indutor de criatividade ligado ao cérebro. Mas antes de testar nela mesma, ela contrata uma ingênua garota do interior como cobaia. Biscaia que tinha feito o ótimo curta Morgue Story, diverte aqui com um clima bem trash no melhor estilo de Re-Animator (1985) – a direção de arte é inspirada nos trabalhos da década de 80 – onde cada situação absurda gera momentos antológicos. Diverte muito e custou irrisórios 180 mil reais. Outra pequena pérola a ser descoberta no cinemão nacional de gênero.

*Texto original alterado para substituir a equivocada expressão humor negro.