No final do ano passado, o cinema norte-americano abordou o colapso financeiro americano de 2008, através do cinismo de A Grande Aposta (2015) de Adam Mckay, um dos indicados ao Oscar de melhor filme este ano. Nele, a crise econômica que afetou diretamente o mercado mundial foi vista a partir do contexto interno, no caso a bolsa de valores e as relações de trabalho inseridas naquela realidade pré-crise. As várias indicações ao Oscar, um elenco de estrelas e uma direção dinâmica, levaram o filme a ganhar os holofotes por parte da imprensa e público.

Na sua sombra cinematográfica (e lançado no mesmo período), outro exemplar também se debruçou sobre a crise, mas ao invés de ficar restrito aos eventos anteriores do caos financeiro, focou nas consequências diretas que atingiram a realidade social do mercado imobiliário que culminou na desapropriação de casas, afetando as famílias americanas, enquanto algumas pessoas tiveram a oportunidade de lucrar em cima da desgraça alheia. O primo “pobre” do filme de MacKay atende pelo nome de 99 Casas, dirigido e escrito por Ramin Bahrani, um ótimo exercício de estudo de personagens, além de um interessante filme denúncia sobre a ganância humana que estimula o espectador a refletir sobre as ações das pessoas no campo da moralidade e da ética.

A sinopse do longa pode ser vista por meio de duas estruturas narrativas: Rick Carver (Michael Shannon que quase beliscou uma indicação de ator este ano pelo filme) é um agente imobiliário ganancioso cuja rotina é executar ordens de despejo, geralmente por inadimplência hipotecária e em cima delas, lucrar. No outro lado da moeda, encontra-se Dennis Nash (o ótimo e subestimado Andrew Garfield) que desempregado, é despejado da casa em que mora com o filho e a mãe (Laura Dern) por Rick e sua equipe. Por uma estranha coincidência do destino, Nash se torna funcionário de Carver, o homem que antes lhe ordenou deixar sua propriedade. Logo, Nash vai viver um grande conflito moral que jamais imaginou passar.

Longe da estética charmosa e cínica do seu primo oscarizado, 99 Casas apresenta uma estrutura clássica que faz diferença pela narrativa densa que Bahrani constrói os arcos dramáticos dos dois protagonistas. O estofo emocional do filme é sempre acompanhado pelo clima tenso que envolve e prende o espectador desde os minutos iniciais. A utilização da câmera documental é trabalhada de forma bem invasiva com a finalidade provocar o incomodo principalmente nas sequências de despejos praticadas por Rick, filmados sempre com frieza, o que expõe tanto a fragilidade emocional individual daquele que está sendo despejado – próximo de uma humilhação moral – quanto à relação de poder daquele que despeja, que na figura de Rick ganha uma objetividade sádica por reger a vida das pessoas sem se preocupar com os sentimentos morais da sua postura.

Dentro da estrutura linear, o roteiro privilegia o debate moral. Discute como o sujeito é refém das circunstâncias e que a sua moralidade e ética são caminhos tênues em uma realidade predatória, que desumaniza os seus atores sociais. O conflito psicológico de Dennis é crível, até porque sentimos empatia pela sua dor e mesmo desaprovando suas ações, a compreendemos por saber que ali reside uma pessoa presa entre o que é moralmente certo/errado e o instinto de sobrevivência, de oferecer a sua família, conforto e segurança. É nele, que se encontra o motor de 99 Casas: Neste  mundo capitalista de hoje, as necessidades sociais e econômica, muitas vezes mobilizam ações inadequadas para encontrar soluções, mesmo que isso signifique crucificar princípios e valores morais.

Do outro lado, o texto mostra Rick como a própria própria representação da ganância do sistema financeiro que graças a conivência do Estado enriquece seu status social, por meio da crise como oportunidade para aumentar os seus negócios. A relação entre Carver e Nash ganha pinceladas dramáticas da literatura clássica de Fausto, obra de Goethe, na forma como o segundo precisa ceder os valores morais da sua alma – aquilo que realmente importa para ele – em prol de uma estabilidade social e econômica.

As atuações de Michael Shannon e Andrew Garfield ajudam a dar a densidade necessária na composição dos personagens. Shannon cria um Rick  que representa bem a figura demônica no mercado imobiliário, um verdadeiro Gordo Gekko de Wall Street. Sua atuação contida e firme, oferece ao personagem um tom maléfico e assustador, mas consegue dar uma objetividade humana a Rick – Odiamos ele, mas sabemos que ele age corretamente de acordo com as regras que o sistema perverso permite. Garfield por sua vez, não faz feio: dá uma ótima dimensão conflituosa ao seu Dennis, jamais se rendendo a dramaticidade estereotipada, pelo contrário, mostra boa versatilidade em trabalhar os dilemas morais do seu personagem. Será interessante vê-lo nas mãos de Scorsese no próximo filme diretor a ser lançado este ano, Silence para finalmente comprovar que O Espetacular Homem-Aranha foi apenas um deslize na sua carreira.

Sem a mesma embalagem pop de A Grande Aposta, 99 Casas é sem dúvida um trabalho mais denso que retrata um drama social de enorme relevância. É como uma continuação informal do primeiro: depois de acompanhar todos os eventos que causaram a crise econômica de 2008, você acompanha os efeitos dela nos anos seguintes. Tem suas imperfeições é lógico até porque ao centrar no embate moral dos dois personagens, deixa de lado os secundários – a mãe interpretada por Laura Dern é um bom exemplo – o que reduz consideravelmente sua visão crítica quando precisa trabalhar os questionamentos morais com a realidade social. Ainda assim , o trabalho de Bahrani prima pelas sutilezas que ajusta suas reflexões em um plano tenso de questionamentos. É uma bela aula de construção de personagens em relação a moralidade e que merece ser descoberto.