Se há uma fonte que parece inesgotável para o cinema, são as narrativas clássicas dos contos de fadas e literatura de aventura. Tão reprisadas quanto reinterpretadas, delas se retira a matéria-prima tanto de um “Drácula de Bram Stoker” (1992) quanto de uma saga Crepúsculo (2008-2012) ou de um “Amantes Eternos” (2013), para ficar no exemplo da figura do vampiro. Com o polonês “A atração” (2015), essa versatilidade é usada pela diretora Agnieszka Smoczynska de maneira bizarra, porém, irresistível, para mostrar outro ser freqüente nas obras artísticas: as sereias.

No filme, elas são entendidas tanto a partir da popular história de Hans Christian Andersen sobre um ser metade mulher, metade peixe, e que deu origem a animação “A pequena sereia” (1989), quanto pela caracterização a partir da mitologia grega. Nesta última, aliás, a sereia ganha ares aterradores, sendo uma criatura que usa de seu canto para seduzir e atrair os homens para a morte quando próximos da água, dialogando então com as Seirēn (Σειρήν no original grego), que eram metade mulher, metade pássaro.

Não bastasse a mistura que deixa claro que não se trata de um filme infantil, “A Atração” apresenta outros pontos que, de cara, quebram com as expectativas de um espectador desavisado: ele traz consigo uma metáfora sobre a perda da inocência e despertar sexual, tema bastante recorrente no cinema encabeçado por mulheres.

Isso se dá a partir da narrativa de duas sereias, as irmãs Prateada (Marta Mazurek) e Dourada (Michalina Olszanska), que decidem vir à superfície e se integram a uma banda que toca num nighclub. Ao passo que a primeira se integra melhor ao novo universo, apaixonando-se e desejando ser humana, a segunda vive em conflito. Nesse meio tempo, participam como cantoras e principal atração da casa de shows, juntamente com uma banda meio synth pop encabeçada por Krysia (Kinga Preis), que faz as vezes de “fada madrinha”.

As dores de se ter um coração puro

As metáforas que “A atração” delineia ao longo do filme possuem alguns traços brutais. O primeiro deles se dá a partir do modo de construção da suspensão de crença: as sereias são vistas sem susto pelos humanos que fazem parte da narrativa, sendo nada mais que seres belos e jovens.

Ao mesmo tempo, essa naturalização traça um paralelo, em vários momentos, com o tema da exploração sexual de menores de idade desde o momento em que se exibem os corpos das sereias. Quando elas sobem à superfície, suas formas são humanas e quase pueris, sendo o dono da boate onde elas de alojam, Kierownik (Zygmunt Malanowicz), o primeiro a conferir que elas carecem de vulva, vagina e ânus. “São como Barbies!”, diz um de seus capangas, entregando a primeira pista de que essas formas não deveriam interessar àqueles homens.

Dentro desse contexto, é ainda mais chocante e estranho o fato de que as moças recuperam a metade inferior de peixe ao entrarem em contato com a água novamente, passando a exibir um orifício na ponta do rabo que surge como genitália, fato que não passa despercebido, de forma atípica, pelos homens que as rodeiam. Não obstante, eles comentam o cheiro característico que elas exalam, num claro paralelo a como vários homens reagem à odores naturais do corpo feminino.

Vale lembrar que, no conto de Hans Christian Andersen, as sereias visitaram a terra firme a partir da adolescência, por volta dos 15 anos (época de mudanças corporais, impulsionadas por hormônios e que demarca proximidade com a vida adulta), o que corrobora com tal interpretação. Isso se dá na medida que a história da pequena sereia continua a ser repaginada no filme a partir da personagem Prateada, que logo se apaixona pelo baixista da banda, Mietek (Jakub Gierszal). A índole do rapaz é posta a prova quando a relação entre os dois parece se tornar mais forte e ela decide, em suas palavras, “oferecer a ele sua cauda”, sendo recusada por conta de sua natureza animalesca.

Ao contrário dos demais homens, que viram nas irmãs sereias uma fonte de lucro e atração sexual, Mietek expressa uma consciência de que aqueles corpos não deveriam ser desejados nesses termos, embora admire Prateada por seu canto e beleza. Além de impulsionar a narrativa de final nada feliz que tem o conto original da pequena sereia, tal cena traz também uma forte metáfora de peso moral sobre a masculinidade perante o proibido.

Abordagens como essa fortalecem “A atração” mesmo quando a diretora passa a não saber muito bem o que fazer com ela, o que se percebe principalmente na narrativa da outra irmã, Dourada. Rebelde, ela encarna a faceta mais maligna das sereias, sendo inserida num contexto de ameaça mortal, tendo na sua descoberta sexual a fonte de uma morte dolorosa para os que se aventuram com ela. Só na última parte do filme que a trama dela se intercala de forma mais profunda com a da irmã, dando continuidade ao ato final do conto de Andersen, novamente encarnando o incentivo à ameaça mortal.

Canto pop

Outra ferramenta criativa que diretora Agnieszka Smoczynska usa é tornar mais literal o canto das sereias, transformando o filme num musical. Sim, sereias sendo corrompidas no submundo de um nightclub polonês enquanto cantam suas desventuras embaladas por instrumentos musicais eletrônicos, o que, por incrível que pareça, funciona.

A trilha de inspiração sugada dos anos 1980 mescla-se engenhosamente com o design de produção e a fotografia de cores nada naturalistas, intercalada ora por cores saturadíssimas, ora desbotadas. É justamente esse visual que salva os momentos em que a inserção da parte musical não é tão inventiva e até mesmo atravanca o desenvolvimento da história, uma vez que ainda assim há algo de interessante para se aproveitar nos deslizes do filme, posto que há sempre ideia criativa em curso.

Tome-se por exemplo a inserção do personagem Tritão no filme. Se na animação da Disney ele aparece como o pai da pequena sereia, em “A atração” ele tem mais a função de um mensageiro (esta, aliás, é uma das funções do original na mitologia grega), corporificado na figura de um punk que não faz lá grandes coisas no filme além de nos informar qual será o destino de Prateada caso o seu amor não seja correspondido. Ainda assim, ele rende uma sequência bacana, com a sereia Dourada cantando numa festa punk divertidíssima que, porém, demarca o quanto sua integração ao mundo dos humanos degrada seu principal atributo: a voz.

Essa profusão de ideias que dão certo e outras que nem tanto é, ainda assim, o trunfo de “A atração”. Mesmo que o produto final tenha seus defeitos, a intensidade que ele emana é tão inebriante quanto o canto das sereias do filme, destacando-se aí as soluções encontradas quando claramente se esbarram em limitações técnicas e de orçamento. Conseguir tal potência num filme de estreia é um bom sinal para a filmografia de Smoczynska, que já nos deixa curiosos para saber qual será a sua próxima empreitada.