Em 1995, junto com Lars von Trier, Thomas Vinterberg criou um movimento, em homenagem ao aniversário de 100 anos da criação do cinema, chamado Dogma 95. A ideia do projeto era afastar-se do estilo comercial de produção cinematográfica, tendo como claro objeto de crítica o modelo norte-americano.

O Dogma queria dar vida a um cinema mais verdadeiro, com menos afetações estilísticas que faziam com que os filmes adquirissem tons que não existem na “vida real”. Para tanto, o projeto tinha como regras determinações como a câmera ser operada apenas na mão, as filmagens tinham que ocorrer em locações, não poderia haver inserções de som ao filme (se alguma música aparece, tem que se produzida no mesmo cenário onde a cena está acontecendo), são proibidos truques fotográficos e filtros, o filme tem que se passar na época atual, e o nome do diretor não poderia aparecer nos créditos.

Filmes produzidos com esse formato ganharam notoriedade, como Os Idiotas (1998), Italiano Para Principiantes (2000) e principalmente Festa de Família (1998), do próprio Vinterberg, que ganhou respeito da crítica, e até um indicação ao Globo de Ouro de melhor filme estrangeiro.

Apesar de ter sido um movimento realizado por artistas interessantes que, de certa maneira, inspirou outros diretores a investigarem essa linguagem (como foi o caso de Jonathan Demme no ótimo O Casamento de Rachel (2009)), o movimento foi alvo de muitas críticas, que o acusavam de ser aproveitador, e muito mais um golpe de marketing do que um movimento com interesses artísticos genuínos.

Bom, isso não importa tanto, pois tanto Trier quando Vinterberg caminharam na carreira, deixaram um pouco de lado as normas do Dogma, e estabeleceram carreira com grandes trabalhos com características diferentes. Porém, uma coisa eles trouxeram do Dogma para todos os seus filmes seguintes e esse elemento é uma das maiores qualidades destes diretores: os seus filmes são crus, sem floreios, não pretendem ser agradáveis de assistir e contam com uma direção de atores voltada pela busca de uma verdade cênica sem nenhuma firula, nem boniteza.

Um exemplo disso é o excelente A Caça, que mostra o que esse tipo de cinema tem de melhor.

Somos apresentados a Lucas (Mads Mikkelsen), um homem que trabalha no jardim de infância de uma escola, e possui uma relação muito próxima com as crianças, adorando estar na presença delas, brincando, sendo sempre muito atencioso. Uma dessas alunas é Klara (Annika Wedderkopp), filha de seu grande amigo, Theo (Thomas Bo Larsen). Ela sempre parece estar deslocada dos outros, situação que é provocada pela forma como é tratada em casa, sempre esquecida pelos pais. A garota acaba se afeiçoando por Lucas, desenvolvendo um carinho muito forte. Mas por sua imaturidade ela acaba confundindo as coisas, e exagera na maneira que se aproxima do homem. Certo dia ela faz um coração artesanal pra o professor, que recusa, dizendo para ela dar para uma pessoal especial. Abalada com a recusa, a garota diz para a diretora da escola que Lucas mostrou o pênis dele para ela. Isso causa uma série de problemas ao homem que começa a ser hostilizado por toda a cidade, que acredita no depoimento da menina.

O filme deixa claro desde o início de que Lucas é inocente e que está sofrendo uma retaliação por um crime que não cometeu. Mas, apesar do filme ser angustiante e de nos revoltar em vários momentos, a direção de Vinterberg não se preocupa em colocar as coisas como num filme de injustiça, com choros, gritos desesperados, discursos inflamados de um homem culpado por um crime que não cometeu, em uma história de mocinho e vilão. Ninguém é vilão na história.

A garota, que é quem mais poderia se enquadrar nesse papel (se estivéssemos em um filme americano), não faz o que faz por mal. Ela é apenas confusa, não sabe o que diz e isso é fruto de uma educação defeituosa, de pais que sequer percebem onde a filha está e de que forma ela vai e volta da escola, pois estão sempre aos gritos um com o outro, xingando-se de vários nomes. Uma criança com problemas de relacionamento e que depois de uma frustração usou a mentira como uma espécie de mecanismo de defesa, obviamente sem se dar conta do que o seu depoimento poderia significar.

A revolta surge pelo oportunismo como toda essa delicada situação foi conduzida, primeiramente pela diretora do colégio, depois pelos pais da menina e, por fim, por toda a sociedade daquela pequena cidade.

Logo de cara, vemos um revoltante interrogatório conduzido por um assistente social aproveitador e tendencioso, que tendo uma intuição de que Lucas era culpado, fez com que, através de perguntas capciosas, a garota insinuasse que o tal abuso realmente aconteceu. Com base nisso, através do olhar que quer encontrar a culpa, ela aparece aos montes, como quando vemos que através de uma série genérica de possíveis sintomas de abuso sexual, outros alunos também dizem que foram abusados.

A partir daí, a sociedade passa a ter certeza absoluta da culpa do suspeito, o julga e condena com base em provas sem peso, baseando-se num ridículo argumento de que crianças não mentem.

Mentem sim. E muito. Mentem, pois com isso percebem que podem conseguir as coisas que querem, sabem que podem usar a imagem de criança a seu favor, e percebem isso através de joguinhos de poder com seus pais, professores, irmãos e amigos, e somente através da educação dadas pelos pais é que se dão conta de que o que estão fazendo é errado.

Mas como disse anteriormente, Vinterberg não tem a intenção de transformar ninguém em vilão, portanto é compreensível que, por exemplo, os pais dos alunos, depois de terem ouvido o relato apocalíptico da diretora, sintam-se repelidos pela figura de Lucas, e passem a hostilizá-lo, visto que pedófilos são indivíduos que sofrem esse tipo de tratamento.

O filme mostra de maneira interessante de que forma a imagem de uma pessoa que sofre esse tipo de acusação vai sendo mudada independente da sua vontade. Depois de um certo tempo, compreensivelmente Lucas vai se revoltando cada vez mais com a sua situação, incluindo até violência em seus atos, quando a injusta forma como está sendo tratado chega a um limite insuportável. E com isso, toda e qualquer forma de manifestar a sua inocência é vista como um atestado ainda maior de sua culpa, pois com isso ele mostra uma face desequilibrada, capaz de fazer loucuras e coisas do tipo.

A crueza trazida por Vinterberg para contar essa história deixam as coisas completamente angustiantes, brutais. É uma direção que deixa um nó na garganta por toda a sua duração, mostrando a complexidade dessas situações com uma desagradável verdade, uma verdade que incomoda, que é inconveniente. Destaca-se a maneira envolvente e inteligente como o diretor conduz a trama, construindo aquela atmosfera aos poucos, além de ter uma fenomenal direção de atores, que é, sem dúvida, o maior mérito do filme.

Aqui, entra o trabalho de Mads Mikkelsen, que compõe um personagem muito interessante, que é conduzido através de uma atuação econômica, mas muito, muito forte. A transformação pela qual Lucas passa é repleta de sutilezas. Perceba como ele é sorridente e de aparência tranquila no início da história, e vai se tornando cada vez mais fechado, amargurado e infeliz. Até que explode como nas cenas no supermercado, e na missa de natal, o momento mais forte do filme.

Os momentos finais deixam claro que não importa quanto tempo passe, não importa se tudo for esclarecido, ou se a vítima disser que tudo foi mentira, isso não resolve as coisas, a vida não volta a ser como era antes, esse caso fica pra sempre. A reunião com os amigos se torna menos sorridente e feliz, o contato com a criança é mais distante, cheio de receios, pois o trauma fica.

E fica mesmo. Como a cena final fica na memória. E o filme, que felizmente ou infelizmente, não vai sair da memória tão cedo.

NOTA: 8,5