Há duas coisas que o cinema e a vida pessoal de Lars Von Trier sempre irão convergir: polêmica e hype. A impressão é que desde o mal estar causado em Cannes em 2011 – durante o lançamento de Melancolia – quando disse que simpatizava com Hitler, o diretor dinamarquês acentuou ainda mais o hype em relação ao seu cinema, um espelho para extravasar suas idéias e o próprio encantamento com o seu ponto de vista. O primeiro filme pós-Melancolia, Ninfomaníaca já apresentava os primeiros indícios desta equação. Nele, a protagonista vivida por Charlotte Gainsbourg funcionava como o alterego feminino do cineasta para reproduzir o seu discurso particular sobre a sexualidade, um direito de resposta às críticas de seus detratores a sua misantropia.

Sua nova produção, A Casa que Jack Construiu, é a plataforma ideal para dar voz aos seus desejos e suas convicções pessoais sobre a natureza humana perversa como justificativa para minimizar as diversas polêmicas nas quais se envolveu nos últimos anos. É claro que o novo trabalho, dentro do vasto legado cinematográfico impetuoso de Trier, deixa o seu cinema punk que desafia convenções, muito próximo a uma tragicomédia sarcástica, característica ideal para indignar as pessoas como aconteceu no Festival de Cannes deste ano, o mesmo local que há 7 anos atrás o baniu depois da declaração inconveniente, mas que serviu de retorno triunfal para o garoto transgressor voltar a polemizar.

Ambientado nos anos 70, o filme segue a trajetória do serial killer Jack (Matt Dillon, impecável) também conhecido como Mr.Sofisticação que relata sua rotina de assassinatos a Virgílio (Bruno Ganz), dividindo seus crimes hediondos – que os considera como obras-primas – em cinco incidentes dentre um total de 60 assassinatos neste período. A partir destas ações, o filme utiliza o ponto de vista cruel de Jack para retratar a arte de matar.

A Casa que Jack Construiu pontua, como no seu filme anterior, a mesma estrutura narrativa clássica em formato off semelhante a uma vídeo-aula (a história é contada de Jack para o interlocutor Virgílio que esta sempre o questionando), dividida em capítulos e repleta de diálogos existenciais no melhor estilo filosofia de botequim que é propagada exaustivamente em mais de duas horas e meia de filme para atender o desejo megalomaníaco do cineasta.

Fica nítido que A Casa possui uma narrativa mais ambiciosa que Ninfomaníaca, afinal Lars tem um campo de discussão que não se limita apenas a sexualidade e sua vertente da perversão, e sim abrange diversas temáticas existenciais como vida e morte, religião, arquitetura, família, arte, poesia e principalmente o tema favorito do cineasta, a violência que faz emergir o comportamento cruel do ser humano.

Isso se faz presente no filme através das cenas gráficas que Lars filma com uma riqueza de detalhes, onde as ações de Jack entram em um espiral de sadismo por não escaparem das suas tendências violentas, ficando a cargo do espectador o papel de vítima voyeur em acompanhar momentos de puro terror psicológico que são indigestos (o incidente 3 e 4, com certeza são aqueles que levaram parte do público abandonar a sessão do filme em Cannes) por mexerem com os tabus da sociedade. Há momentos especiais, um deles é do incidente 2, o surto de TOC (Transtorno Obsessivo Compulsivo) que impele Jack a não sair da cena do crime por imaginar que não limpou as manchas de sangue dentro da casa. É uma cena com elementos surreais com um desfecho sensacional por parte do diretor, ao som de “Fame” de David Bowie.

O texto de Lars que flerta com a metafísica é instigante na sua crítica a arte contemporânea pelo tom deliciosamente subversivo sobre as causas da crueldade presente nas obras de ficção. Tanto Jack quanto Virgilio são as representações do próprio diretor, sua força como comunicador para difundir sua visão de mundo: de um lado, o ego “bom” do cineasta, que acredita que a arte é a expressão do amor e das relações humanas personificada por Virgílio; do outro, a expressão do anjo “mau” inserida em Jack que vê na violência a expressão artística do seu desejo incontrolável, “Você mata a arte quando impõe suas regras morais à ela!”, indica Jack.

É uma pena que em querer discutir a violência como poesia, Von Trier crie uma narrativa obsessiva que faz o filme em vários momentos descambar para chatice. Realmente há nele um punhado de ideias provocativas que fortalecem a forma, ainda que o conteúdo é desnecessariamente prolixo, enfadonho, que irritantemente não levam a nada. A própria construção da dinâmica do seu serial killer é caricata, com o próprio diretor esquecendo certas características como o TOC e suas motivações infantis durante o desenrolar da narrativa.

Neste ponto, a egotrip do cineasta pula na cara do espectador quando no último ato, ele utiliza várias imagens dos seus filmes anteriores, como explicação para a maldade humana. Não há nada mais ególatra ou gratuito por parte do diretor, que deixa claro, que sua retórica afiada de outros trabalhos, fique a desejar no novo filme pela repetição da estrutura dramática e sem a mesma reflexão metafórica de outras épocas. A criatividade (e genialidade) como utilizava a provocação através da imagem a favor da sua dramaturgia ou do seu debate, ficou para segundo plano, com teses de auto indulgência para desenvolvimento narrativos.

Tecnicamente o bom e velho Lars continua com o seu rigor estético típico. O epílogo do filme mostra que a expressão artística deslumbrante de Melancolia e Anticristo não foi esquecida, com uma belíssima atmosfera que apresenta uma ampla série de imagens que remetem a um pesadelo expressionista infernal dantesco. Matt Dillon, desde Drugstore Cowboy de Gus Van Sant tem o papel mais magnético e desafiador da sua carreira, ao incorporar uma figura empática, maluca e engraçada, sem soar clichê. É um papel para colocar no topo da apresentação do seu currículo para Hollywood.

A Casa que Jack Construiu fica no meio do caminho entre aquele filme subversivo interessante sobre a arte da criação e aquele perdido na própria autossuficiência intelectual na figura do seu serial killer. A profanação de um cadáver infantil e os acenos documentais visuais que Lars realiza com Hitler, Mussolini e Stalin, criam uma enorme  vontade de estender o dedo do meio para diretor e dizer: você pelo jeito, não aprendeu nada desde o seu discurso inconveniente em 2011. #Larsvontrier não.

Com sua história sombria, um viés filosófico torto com ótimos momentos e outros extenuantes e um sarcasmo que contribui muito para a validade da obra, A Casa que Jack Construiu revela que o grande autor europeu esta cada vez mais se isolando na sua egotrip de devaneios artísticos. O citado epílogo exemplifica isso, de cenas lindas que referenciam pinturas e livros, que produzem encantamento no olhar do público, mas que não trazem nada de relevante para narrativa, a não ser o interesse do seu diretor de querer brandir o seu talento. Von Trier continua um ótimo provocador nas imagens, mas infelizmente já não causa um grande impacto pelos caminhos imaturos que tem seguido na sua carreira.

Ainda assim, A Casa traz a marca do cinema do diretor, para o bem e para o mal. É um tipo de filme para ser visto na tela grande do cinema, pelas provocações de uma psique perturbada que seu autor propõe, ainda que parte delas, questionáveis. Pelos caminhos oferecidos pelo novo filme, a casa construída por Von Trier no projeto arquitetônico continua inspirador na vontade e prazer de instigar as provocações, porém, sua execução indica uma estrutura feita nas coxas e com um material de qualidade irregular.

*Texto original alterado para substituir a equivocada expressão humor negro.