Recentemente, a Netflix lançou no catálogo o longa metragem “Eu Não Sou Um Homem Fácil”. Na trama um homem sofre um acidente e acorda num mundo em que as mulheres são as dominadoras, enquanto aos homens cabem tarefas as quais socialmente são impostas as mulheres. Embora o filme gere um incomodo por levantar questões relacionadas ao espaço ocupado por gêneros, ele não consegue levar a discussão adiante e se sustenta sobre essa imposição socialmente construída do que compete ao homem e a mulher. Mas não é sobre esse filme que trataremos aqui.

Ai você deve estar se questionando o porquê começamos o abordando. Bem, partindo das questões não respondidas e nem levadas adiante por “Eu Não Sou Um Homem Fácil”, ao realizar um paralelo com outra produção francesa, encontramos o desenvolvimento dessas indagações em “A Número Um”, que também discute as imposições socialmente construídas sobre as mulheres.

Dirigido e roteirizado por Tonie Marshall, “A Número Um” deixa claro desde os primeiros instantes da projeção qual o seu propósito. Realizando um paralelo visual entre o mar e as mulheres, dois elementos que acompanham a protagonista, torna-se fácil identificar as peças que estarão em evidência e serão discutidas no decorrer da trama. Dessa maneira, o filme se constrói dando indícios freqüentes do que esperar, não apenas por meios visuais, mas também pelo seu texto fluido com sacadas inteligentes e sagazes que fazem conexões com personagens e referências feministas. O humor ácido constante, mesmo que não intencional, contribui para que a perspicácia textual seja elevada, auto-identificável e prazerosa de se contemplar em tela.

É espontânea a admiração por ver como Marshall consegue transpor para a situação que Blachey (Devos) se encontra muitos aspectos vivenciados por mulheres em qualquer sociedade contemporânea. Principalmente, por colocar em tela a mulher quando ocupa uma posição de chefia de homens, quando seu salário é superior ao do marido e até mesmo quando não é apenas profissional, mas também mãe, filha, companheira e militante. Blachey é uma mulher cheia de defeitos, como qualquer outra, no entanto suas lutas e semblantes são encontrados na maioria dos lares do mundo. E isso a torna palpável, tangível, real. Torcer por ela é como torcer pela mãe, irmã, amiga, por si. Talvez por este motivo, o filme queira tantas vezes abordar a importância da solidariedade feminina (sororidade) e como ela funciona. No mundo roteirizado por Tonie Marchall, as mulheres se compreendem e unem-se em prol de um bem maior. Esquecendo diferenças e rivalidades, partem em busca do lugar ao sol no universo trabalhista para as mulheres, o qual já é estabelecido no mundo onírico de “Eu Não Sou Um Homem Fácil”.

É importante observar como o filme transmite a ideia de que a sociedade delimita com bastante precisão os campos em que devem atuar homens e mulheres e o quanto o status quo se faz dependente deste nivelamento para nutrir-se e existir. Olhando sobre um aspecto geral, o grande rival/inimigo de Blachey não é Beaumel (Berry), mas a concepção social de que mulheres podem ocupar o número 3 ou 4 numa empresa, mas dificilmente chegarão a merecer o número um.  Essa castração imposta sobre a mulher é um processo que a acompanha desde a infância, por isso a figura paterna presenteia-se e mostra-se como o ponto de descrição da protagonista. O pai (Frey) procura frequentemente dizer-lhe quem ela é ou como deve agir, moldando-a para o comportamento dito ideal pela sociedade. As atitudes dele evidenciam um desejo para que ela se encaixe nos parâmetros sociais e que isso seja o suficiente para podar as asas que Blachey usa a todo o momento para contrapor-se ao pai e, consequentemente a sociedade a qual ele representa e que, assim como no filme, está sempre em busca de adequar aquelas que se diferenciam do parâmetro.

Tal diferenciação conduz a inúmeras reflexões, especialmente quando a ótica predominante é a da sociedade patriarcal. À mulher são cobradas características que denotem uma humanidade pautada em afetuosidade e amenidades, como se esses fossem os únicos atributos necessários para que ela vença a guerra velada que existe para que o lugar que ela queira estar seja seu. É incomodo e espantoso como isto define o modo de vida da mulher dentro do mercado de trabalho. Já que quando ela não utiliza o escopo programado, as indagações e acusações reverberam como se sua própria humanidade estivesse desvirtuada frente as suas imposições. Esquecendo que as atitudes vêm de pessoas e não de gêneros.

Não é surpreendente quando a obra evidencia que muitas mulheres não encontram seu lugar no mundo por serem podadas por todos os lados e realmente sentem que não tem espaço para ser o que queiram ser. Não a toa que Marshall faz uma citação direta a Margareth Atwood, em que “os homens tem medo que as mulheres riam deles. As mulheres têm medo que os homens as matem”. Não necessariamente a aplicação literal deva ser feita, mas a falta de espaço já é um assassinato. Silencioso e velado, com ar de proteção e cuidado.

Diante disso, seria o feminismo de ordem política ou religiosa?

Marshall traz uma obra emergente e essencial para o momento. Ela arrisca um exercício questionador sobre o papel feminino na sociedade contemporânea sem buscar artifícios irreais, mas propondo situações palpáveis por mais absurdas que possam soar em determinados momentos. Os caminhos e percalços por quais Blachey passa moldam-na para torná-la a número um e abrir portas e espaços para as mulheres consolidarem-se. “A Número Um” prova que ainda falta muito para a dominação feminina e que até chegar lá, há uma luta na qual estamos dispostas a entrar e alcançar o outro lado do mar.