Dentre os vários expoentes do cinema asiático, os filmes tailandeses vêm se destacando desde os anos 1990, quando passaram por uma espécie de renascimento. Nesse contexto, diretores como Pen-Ek Ratanaruang tiveram papel fundamental ao trazer filmes inventivos e únicos. E são esses os adjetivos mais apropriados a “A última vida no universo”.

Esse é o quarto filme de Pen-Ek Ratanaruang, e, junto com “Invisible waves” (2006), é o seu mais conhecido. Nele acompanhamos Kenji (Tadanobu Asano), um meticuloso bibliotecário japonês vivendo na Tailândia. Ele contrasta a aparente calma e organização com um desejo inexplicável de matar a si mesmo. Quando o irmão dele, o yakuza Yukio (Yutaka Matsushige) chega fugido do Japão, as histórias de Kenji e da jovem Noi (Sinitta Boonyasak) começam a se entrelaçar. Ela é irmã de Nid (Laila Boonyasak), que trabalha como hostess vestida de colegial japonesa numa casa noturna que Yukio frequenta. A trama se complica até culminar com a morte de Yukio e Nid, o que faz com que Kenji e Noi passem a viver juntos.

Esses encontros e desencontros que tornam até mesmo difícil trazer uma sinopse de “A última vida no universo” se traduzem de várias maneiras ao longo do filme. Primeiramente, há vários significados possíveis ao se tentar traduzir o título original, “Ruang rak noi nid mahasan”. Segundo, há vários momentos em que a edição confunde o espectador ao misturar realidade e fantasia. Por fim, a própria resolução da trama se mostra aberta a interpretações diversas. Essa estruturação permite que o filme traga uma narrativa diferente e interessante, ao mesmo tempo em que mostra o domínio de seu diretor para com a linguagem fílmica.

Desde o fato de que o título do filme só aparece na tela depois de quase 30 minutos de projeção, o estranhamento dá o mote à obra. Talvez por isso acabem soando tão naturais as rupturas e as buscas de se fazer entender numa trama em que há três línguas diferentes sendo utilizadas: o tailandês, o japonês e o inglês. A solidão dos personagens desafia e transpassa tudo aquilo que tenta, a qualquer custo, separá-los, e aí acontece a transformação de ambos, de forma que a barreira da língua surge como uma das várias metáforas do filme.

Em termos de atuação, Tadanobu Asano domina o filme. Seu Kenji transita entre uma condição quase inumana, mas o pouco que ainda o prende a vida torna o personagem extremamente sensível. Asano transpassa essa discrepância numa atuação sutil e que, ironicamente, abre espaço para certos momentos cômicos numa trama tão pesada em seu cerne. Nesse sentido, a então estreante no cinema Sinitta Boonyasak é bem sucedida ao atuar como contraponto dele também de maneira sutil, embora sua personagem seja muito mais expansiva. Outro destaque no elenco é a presença do diretor Takashi Miike como o mafioso da yakuza que ameaça a vida de Yukio, que não precisa fazer muito para parecer ameaçador. Sua participação até abre espaço para a brincadeira de mostrar, numa das cenas, o pôster de “Ichi, o assassino” (2001), um filme dirigido por Miike e estrelado por Asano.

A melancolia do roteiro, também escrito por Ratanaruang, tem uma tradução visual com a sempre impressionante direção de fotografia de Christopher Doyle. Conhecido pelo seu trabalho junto ao chinês Wong Kar Wai em filmes como “Felizes juntos” (1997) “Amor à flor da pele” (2000), Doyle apresenta um mundo de cores desbotadas que metaforizam a condição psicológica dos protagonistas de “A última vida do universo”, ao passo que apenas as luzes da noite parecem trazer algum calor a eles. Essa mudança também é mais perceptível no momento em que Kenji e Noi mudam para a casa dela, um local mais dominado pela variedade de cores e texturas quase inexistentes no universo de Kenji ao qual o espectador é apresentado por primeiro.

Há um bom casamento do trabalho de Doyle com a direção de arte como um todo. Kenji é obcecado com a ideia de morte e vê nela um descanso, uma purificação. Seu entorno, então, é repleto de tons de branco e cinza, expresso na biblioteca em que trabalha, nas roupas sociais que veste e na decoração de sua casa. Já Noi é cheia de vida, impulsiva; ela carrega mais acessórios e suas roupas têm um ar de desleixo contrário e complementar à Kenji, tal como a caracterização de sua casa, que é bagunçada e pouco tem a ver com alguma sofisticação em termos de decoração. A presença repetitiva de pequenos lagartos no decorrer do filme também traz uma carga de significados implícitos, remetendo a um livro que Kenji gosta, “O último lagarto”, escrito pelo também cineasta (e suicida) Yukio Mishima.

 Esses pequenos simbolismos se agregam às brincadeiras com a montagem, que acaba por dar um ar fantástico a vários momentos do filme. Há situações como quando Kenji fantasia seu suicídio, para só depois o espectador descobrir que era apenas a imaginação do personagem, ou quando a casa de Noi se arruma magicamente. Porém, é a presença de Nid entre os dois, como um fantasma ou como uma alucinação, o que mais chama a atenção. Nesse sentido, a semelhança entre as duas atrizes, que são irmãs na vida real, é um ponto a mais na trama.

 “A última vida no universo” se constrói e se ressignifica em suas diversas camadas, encantando o público a partir de como a direção manipula as possibilidades da linguagem. Porém, o espectador nunca encara o filme como um simples exercício de expertise técnica, pois esta se entrelaça a todo o momento com a sensibilidade, transformando o filme numa pequena pérola do cinema asiático atual.

Nota: 9,0