No início de Alita: Anjo de Combate, a câmera dá um close na protagonista enquanto ela está dormindo e nós vemos seu rosto, os detalhes da sua pele, e então ela abre os olhos e percebemos que ela é basicamente uma versão real de uma personagem de anime ou mangá. Não à toa, o filme dirigido por Robert Rodriguez e produzido e co-roteirizado por James Cameron é baseado num mangá do autor Yukito Kishiro. E é aí que o milagre do filme acontece: apesar do nosso estranhamento inicial com aquela figura, ela acaba conquistando o espectador e parecendo tão, ou até mais, humana que seus companheiros de cena.

O filme é ambientado em 2563, e como quase sempre nessas histórias, o futuro é sombrio, mas também bem legal… Houve uma guerra que devastou a Terra, os seres humanos modificam seus corpos com implantes cibernéticos e há uma enorme cidade no céu, acima da pobreza e da bagunça onde os personagens vivem na superfície. Um cientista, o doutor Dyson Ito (vivido por Christoph Waltz), encontra no lixão um cérebro ainda ativo ligado a um corpo cibernético. Ele a conserta e a batiza de Alita – que é a protagonista, vivida por captura de performance por Rosa Salazar. Com o tempo, Alita descobre o mundo, mas sua origem e capacidades como arma ciborgue guardam um mistério que a colocarão contra o poderoso Vector (Mahershala Ali) e o misterioso governante da tal cidade nos céus.

Adaptar Alita para o cinema era um projeto antigo de Cameron – faz pelo menos 15 anos que ele circundava a ideia. Mas teve de abdicar do posto de diretor quando decidiu voltar suas atenções para Avatar (2009) e as quarenta sequências vindouras do épico “pandoriano” que ele está preparando. Cameron cedeu o projeto a Rodriguez devido ao fato de este ser também um expoente do cinema digital: afinal, o cineasta texano filma, monta, compõe as trilhas sonoras e faz os efeitos visuais de seus filmes no seu próprio estúdio, já há alguns anos. Alita é o maior orçamento com o qual Rodriguez já trabalhou e também uma benvinda mudança de ares para ele, que se encontrava no atoleiro criativo já há um bom tempo. O conhecimento técnico dele vem a calhar numa produção tão técnica – há retoques e efeitos digitais em praticamente todos os planos do filme, e o trabalho de efeitos é impressionante. Mas é inegável que Alita é um filme mais próximo de Cameron do que de Rodriguez.

Afinal, temos uma protagonista feminina forte, uma narrativa mais clássica de autodescoberta e sem muito espaço para as irreverências típicas dos filmes de Rodriguez, um pouco de romance – um dos pontos fracos do filme, o galãzinho Keean Johnson como interesse romântico veio da escola “Malhação” de atuação e o roteiro faz com que a mesma coisa ocorra com ele duas vezes, o que parece redundante e não ajuda a aumentar a empatia pelo casal. Só em poucos momentos se sente traços da personalidade de Rodriguez no filme, como na cena da briga no bar ou em algumas cenas isoladas com o elenco jovem, que trazem um pouco da jovialidade da franquia Pequenos Espiões do diretor. Mas de vez em quando faz bem a certos cineastas saírem das suas zonas de conforto, mesmo que isso envolva trabalhar como “diretor de aluguel” de vez em quando: Alita é fácil, fácil o melhor filme de Rodriguez desde Sin City: A Cidade do Pecado (2005), sua adaptação de HQ que também era um filme absolutamente técnico.

O fato é que Rodriguez, sob a batuta de Cameron, entrega um filme divertido – dá até vontade de querer voltar para a óbvia sequência, praticamente prometida ao final deste – e que tem um coração. É realmente incrível como a ótima atuação de Salazar se transfere para a sua personagem digital, e circundar a atriz com intérpretes como Waltz – muito bom como figura paternal e até heroica, sem repetir trejeitos dos seus conhecidos vilões – além de Ali e da veterana Jennifer Connelly, não faz mal nenhum. As suspeitas decorrentes do trailer não se confirmaram: com o tempo, o visual da personagem nos conquista ao invés de nos causar repulsa. Há até uma cena em que Alita retira seu coração do peito e o oferece a outro personagem: a inocência e o encanto da personagem vêm à tona de maneira poderosa nesse momento. Apesar de ser feito de pixels, Alita: Anjo de Combate tem um coração bem pulsante.

E quando nos lembramos da triste história recente das produções hollywoodianas que buscaram inspiração em mangás e animes japoneses, ou mesmo tentativas de adaptações diretas – Dragonball: Evolution (2009)! O Último Mestre do Ar (2011)! Ghost in the Shell: A Vigilante do Amanhã (2017)! – esse coração se torna ainda mais precioso e o filme, mais especial.