O cinema da Região Norte do Brasil sofreu um duro golpe com a divulgação do resultado preliminar do edital Novos Realizadores pela Agência Nacional do Cinema (Ancine). Mesmo com 26 projetos aptos para serem contemplados, nenhum deles conseguiu ser aprovado na lista divulgada pelo Banco Regional de Desenvolvimento do Extremo Sul e Fundo Setorial do Audiovisual, na última quarta-feira (18).  

O edital Novos Realizadores prevê investimentos de R$ 100 milhões em ampla concorrência, mas, trazendo linhas de indução voltadas para as Regiões Norte, Nordeste, Centro-Oeste, Sul, além de Minas Gerais e Espírito Santo. Ao todo, 519 projetos de todo país se inscreveram. No final, Rio de Janeiro (9), São Paulo (8) e Pernambuco (8) tiveram os maiores números de propostas aprovadas seguidos por Minas Gerais (7), Bahia (6) e Distrito Federal (5).   

A maior esnobada ao cinema nortista aconteceu justamente na linha de indução específica para a Região Norte em conjunto com Nordeste e Centro-Oeste: dos 21 projetos selecionados e R$ 36,1 milhões em jogo, os projetos nordestinos – especificamente, Bahia, Alagoas, Pernambuco, Paraíba, Ceará e Piauí – ficaram com 15 vagas e as demais para o Centro-Oeste com Distrito Federal, Goiás e Mato Grosso. 

Segundo o jornalista Jotabê Medeiros, do ótimo ‘Farofafá, o caos nos últimos anos dentro da Ancine contribuiu para o resultado absurdo do edital Novos Realizadores. Em matéria publicada no dia 18 de janeiro, pareceristas voluntários ficaram responsáveis por avaliarem os projetos aptos a receber até R$ 2 milhões. Para piorar, os avaliadores da própria instituição não tiveram os nomes divulgados. 

FORÇA DO CINEMA NORTISTA ESQUECIDA 

“Noites Alienígenas” foi consagrado com cinco Kikitos e uma menção honrosa no Festival de Gramado 2022.

O esquecimento ao audiovisual da Região Norte machuca ainda quando se percebe os avanços da produção local nos últimos anos em festivais nacionais e internacionais. O Festival de Gramado, o mais popular e tradicional do Brasil, consagrou o amazonense “O Barco e o Rio”, de Bernardo Abinader”, em 2020, com cinco Kikitos, incluindo Melhor Filme Nacional na mostra competitiva de curtas-metragens. Ano passado, o acreano “Noites Alienígenas”, de Sérgio Carvalho, repetiu a dose, mas, desta vez, entre os longas-metragens, ganhando também cinco Kikitos e uma menção honrosa para o ator amazonense Adanilo.  

Nos últimos anos, ainda vimos “Manaus Hot City” vencer Melhor Curta-Metragem no Mix Brasil, o documentário paraense “O Reflexo do Lago” chegar na Mostra Panorama do Festival de Berlim, eventos como Amazônia.Doc, Pachamama e Olhar do Norte se consolidarem no calendário de festivais brasileiros, o surgimento do Matapi – Mercado Audiovisual do Norte e diversas outras conquistas. Esta ascensão mesmo em cenário político tão adverso, como foram os últimos sete anos, entretanto, não serviram para a Ancine contemplar nenhum projeto da Região Norte do Brasil no edital Novos Realizadores.   

“Obeso Mórbido” passou por eventos como a Mostra de Tiradentes, Cine PE e Festival de Vitória.

Engana-se quem pensa que a seleção no edital não aconteceu por conta da inexperiência dos proponentes: a lista de projetos aptos do cinema nortista trazia, por exemplo, produtoras experientes como a Platô Filmes, de Roraima, responsável pelo documentário “Por onde anda Makunaíma?”, ganhador do Festival de Brasília, e nomes como Sérgio Andrade, diretor de “A Floresta de Jonathas” e “Antes o Tempo Não Acabava”. Projetos de longas premiados como “O Barco e o Rio”, da Fita Crepe Filmes, “Obeso Mórbido”, da Fitacrepe Filmes, e “Meus Santos Saúdam Teus Santos”, da Leão do Norte, também estavam na lista.  

Desde a divulgação do resultado preliminar, entidades como a Associação das Produtoras Independentes do Audiovisual Brasileiro (API) e Conexão Audiovisual Norte, Nordeste e Centro-Oeste (CONNE), além da própria classe artística dos sete Estados da região, se articulam para tentar reverter a situação. Segundo o edital, há um prazo de 10 dias “para a apresentação de razões recursais contra a decisão”. 

“O Reflexo do Lago” foi o primeiro filme paraense lançado no Festival de Berlim.

DEPOIMENTOS

O Cine Set conversou com nomes fundamentais do cinema da Região Norte do Brasil. Cada um respondeu uma pergunta, dando um mosaico do panorama delicado apontado após o resultado preliminar do edital Novos Realizadores. 

Cine Set – Quais fatores levaram à exclusão dos projetos da Região Norte no resultado preliminar do edital Novos Realizadores? 

O principal motivo que gerou esta distorção foi a forma como Ancine estruturou tanto o edital Novos Realizadores como o Produção de Cinema, o qual também não teve projetos do Norte selecionados. Isso inclui os critérios de avaliação, a escolha dos pareceristas e deles serem voluntários, a lógica de pontuação automática, entre outros aspectos. A CONNE irá solicitar a revisão do resultado e que as distorções sejam corrigidas. 

Clemilson Farias

Diretor Norte Conexão Audiovisual Norte, Nordeste e Centro-Oeste (CONNE) e sócio da Leão do Norte Produções Audiovisuais

Cine Set – Como mudar este cenário para que o Norte não fique ausente nos próximos editais da Ancine? 

Temos que exigir que Ancine alinhe suas ações de fortalecimento da cadeia produtiva do audiovisual com as diretrizes do governo Lula, que destacou a prioridade da Amazônia em sua gestão daqui pra frente. Já demonstramos a potência e qualidade do cinema do norte, com filmes circulando e sendo reconhecidos com prêmios no Brasil e no exterior. Esse erro crasso no edital de Novos Realizadores não vai afetar nosso orgulho de pertencimento e nem nossa vontade e necessidade de produzir narrativas amazônicas. Para isso é fundamental que nós realizadores audiovisuais estejamos ativos nas instâncias de representatividade, ocupando cadeiras em diretorias, conselhos, fóruns de cultura e cinema e fortalecendo nossas entidades de classe como as associações de cinema locais, regionais e nacionais. 

Thiago Briglia

Conselheiro Norte na diretoria da Associação Nacional de Produtores Independentes (API). Diretor da Platô Filmes e produtor do documentário “Por onde anda Makunaíma?”

Cine Set – Como mudar este cenário para que o Norte não fique ausente nos próximos editais da Ancine?

Na minha avaliação, o melhor modelo é do edital de TVs públicas, onde as linhas já são separadas por região. Somente a cota CONNE do jeito que está não contempla mais um audiovisual tão diverso.

E não podemos dizer que o audiovisual do Norte não esteja sendo reconhecido com tantas produções premiadas ou selecionadas em festivais ou canais de televisão/streaming.

Fernando Segtowick

Co-fundador da Marahu Filmes. Diretor, produtor e roteirista de "O Reflexo do Lago".

Cine Set – O que representa esta ausência da Região Norte no resultado do edital?  

Fiquei perplexo com o resultado, especialmente quando a exclusão está presente até mesmo no recorte do CONNE. Trata-se de um retrocesso muito grande até pelas conquistas do cinema do Norte em festivais nos últimos anos. Não é possível que, entre 26 projetos, nenhum fosse minimamente qualificado para esta cota pertencente às Regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste. Até por conhecer alguns dos proponentes aptos, sei da competência e capacitação destes profissionais. Logo, é incompreensível este resultado.

Há ainda uma violência simbólica absurda ao não ter ninguém selecionado: seria como colocar todos em uma vala de incompetência. Isso a partir de um olhar colonizador e de desconhecimento da capacidade de ser produzir na região.  

Sérgio de Carvalho

Diretor, roteirista e produtor de “Noites Alienígenas”, ganhador de cinco Kikitos no Festival de Gramado 2022.