“O Barco e o Rio” não irá representar o Amazonas sozinho no Festival de Gramado 2020: a atriz Raquel Kubeo integra o elenco de “Bochincho”, produção selecionada para a disputa da categoria de curtas-metragens gaúchos. A trajetória desta manauara de 30 anos, indígena descendente das etnias Kubeo e Tukano, mestranda em Educação na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, traz uma luta permanente de ativismo social aliada um conhecimento do potencial inclusivo e transformador do audiovisual.

Baseado no poema de Jayme Caetano Braun, “Bochincho” conta a história de um velho homem que, ao lado de parceiros de lida, evoca suas lembranças de um pitoresco episódio de seu passado no Rio Grande do Sul. Justamente em um destes flashbacks que Kubeo aparece ao interpretar uma indígena. “Participei de uma diária. Estou bem otimista para o festival: o filme faz um resgate cultural importante e tem muitas chances de ser premiado. A direção de fotografia está muito boa”, disse em entrevista ao Cine Set.

O curta de 17 minutos dirigido por Guilherme Suman e gravado no início de março, pouco antes da pandemia da COVID-19 ser declarada pela Organização Mundial da Saúde (OMS), será exibido no Canal Brasil e no serviço de streaming da emissora. A edição online do Festival de Gramado 2020 começa no dia 18 de setembro e segue até o dia 26 do mesmo mês.

ATIVISMO SOCIAL COMO RESISTÊNCIA E SOBREVIVÊNCIA

Integrante do Centro de Referência Afro-Indígena do Rio Grande do Sul e da Rede Indígena de Porto Alegre, Raquel Kubeo cresceu no Mauazinho, bairro da zona leste de Manaus, antes de se mudar para a capital gaúcha em 2016 para fazer mestrado. “Eu vim de uma região periférica, onde o ativismo era da sobrevivência à violência do tráfico de drogas, à violência do tráfico humano, fora atuações sociais menores na escola e na Pastoral”, declarou.

A porta de entrada para o setor artístico veio ao participar do Cia Arte Espaço Pombal, grupo teatral conduzido pelo saudoso Luiz Vitalli, em 2015. O trabalho ao lado de outros atores indígenas, entre eles, Kay Sara (“A Terra Negra dos Kawá“), Sandra Nanaina (participação no clipe “Let Me Be The One”, de IZA e Maejor) Anderson Kary-Bayá (“Aruanas”, “Antes o Tempo Não Acabava“), segundo ela, acabou sendo uma forma de expressão de si própria como uma espécie de resistência cultural. Formada em pedagogia pela Faculdade Salesiana Dom Bosco, não demorou muito para Raquel notar que o futuro estava longe de Manaus. “Com a crise econômica, eu percebi que não ia ter muitas oportunidades, nem na vida cultural nem acadêmica e, por isso, optei por vir fazer o mestrado no Rio Grande do Sul no fim de 2016″.

“Quando me mudei, pude ampliar essas redes. Os governos também contribuíram para me tornar mais ativista, afinal, a violência e a opressão estão cada vez mais escancaradas. Perdeu-se a vergonha de ser racista e o discurso de ódio está presente a todo instante. Quanto mais ganho consciência disso, mais eu sinto a necessidade de estar nestes espaços com diferentes atividades que ajudem o meu e outros coletivos. Essa transição de Manaus – uma metrópole que ainda não é reconhecida como tal no Sul e Sudeste, além da constante confusão geográfica entre Norte e Nordeste – para Porto Alegre traz uma questão racial embutida – você não ser branca já ressoa uma inferioridade, gerando menos oportunidades para negros e indígenas. Estar em Porto Alegre é uma resistência“.

Nestes quase quatro anos em Porto Alegre, Raquel Kubeo já se envolveu em diversos projetos culturais – oficina com o diretor Gustavo Spolidoro, clipe da cantora Zélia Duncan, projetos de documentários, vídeo-manifesto e, claro, a atuação em “Bochincho”. Isso sem nunca perder o foco no ativismo social. “Neste momento da pandemia, estamos trabalhando na divulgação, compartilhamento de notícias, além de denunciar questões do governo e atualizar as redes sociais do coletivo e da rede indígena”, afirmou.

REDE INDÍGENA PARA O AUDIOVISUAL

A atuação social de Raquel se estende para o setor do audiovisual para além do trabalho na frente e atrás das câmeras. “Tenho amigos no audiovisual/cinema e estamos trabalhando para aumentar a visibilidade e participação indígena no setor. Infelizmente, precisamos, a todo momento, comprovar que existimos: a autoafirmação indígena é a nossa luta, o nosso ativismo. Ou você é ativista ou você é ativista – não há escolha”, disse.

“O cinema reflete o cenário nacional: hoje, estamos muito mais organizados. Através das redes sociais, temos contatos com atores indígenas como a Zahy Guajajara (“Dois Irmãos”) e estamos nos fortalecendo enquanto movimento. Existe um movimento de artistas indígenas de audiovisual e, sempre quando aparecem oportunidades, chamamos os ‘parentes’ para ter esta visibilidade”.

Mesmo dentro de um cenário de suporte da própria classe do audiovisual e a procura por um representantividade maior das minorias no cinema brasileiro, isso não impede que certos vícios sejam mantidos. “Noto que, muitas vezes, busca-se fenótipos indígenas genéricos – olho puxado, cabelo liso, por exemplo. Mas, sempre é bom lembrar que há fenótipos diferentes das mais diversas regiões brasileiras. Também olha-se como se o indígena somente estivesse apenas na floresta, quando há muito de nós inseridos nos meios urbanos e que não deixam de ser indígenas por causa disso”, salientou.

Por fim, a atriz de “Bochincho” faz um alerta quanto ao dramático momento da população indígena durante a maior pandemia de nossa geração. “Neste momento, temos cerca de 631 parentes mortos e 22.325 infectados pela COVID-19, fora os que estão subnotificados e os que foram contabilizados como brancos, algo que aconteceu em Manaus. São territórios, aldeias em que o descaso político leva ao genocídio e etnocídio, afinal, são culturas e povos que podem ser dizimados a qualquer momento sem chance de recuperação”.

‘Pés de Peixe’: jornada do herói made in Amazônia

Conheci o cinema do diretor amazonense Aldemar Matias por meio de uma amiga que dizia que ainda o veríamos assinando um original nos grandes serviços de streaming. Alguns anos se passaram e pude contemplar o trabalho do diretor ao lado de Larissa Ribeiro na tela da...

‘Amazonas, O Maior Rio do Mundo’: imagens intrigam e revelam as contradições da Amazônia

Como explicar a experiência de ver, em uma sessão até agora única, um filme de um pioneiro do cinema, dado como perdido há mais de 100 anos, que retrata justamente a região onde você vive – e você até está dentro de um dos cenários da obra?   Sobretudo, como explicar...

‘Prazer, Ana’: o terror de uma noite qualquer

Uma noite qualquer para dezenas de pessoas em uma mesa de bar. Mais uma cerveja, mais uma cadeira, mais alguém chegando, mais vozes ao redor, mais conversa para jogar fora, mais uma marchinha de carnaval na caixa de som. O mais banal dos cenários para a mais comum das...

‘O Desentupidor’: um olhar anárquico sobre a invisibilidade social

Jimmy Christian é um dos mais prolíficos realizadores da cena amazônica. Semelhante aos Gremlins do filme homônimo de Joe Dante da década de 80 que se reproduziam em abundância no primeiro contato com a água, Jimmy produz roteiros e curtas sempre que uma nova ideia...

‘Meus pais, Meus atores preferidos’: o pessoal pode ser coletivo

O curta Meus pais, meus atores preferidos, de Gabriel Bravo de Lima, é o segundo trabalho do diretor - o primeiro foi “No Dia Seguinte Ninguém Morreu”, vencedor do prêmio de Melhor Roteiro no Olhar do Norte 2020. O ponto de partida foi realizar uma série de...

‘Controle’: curta peca ao não amarrar tantos caminhos possíveis

O formato de curta-metragem pode ser revelador. Escancaram-se os pontos fortes dos cineastas – mas também se encontram suas fraquezas. Porque a duração é apertada, o curta exige um tratamento econômico. Cabe a diretores, roteiristas e montadores dar conta do que quer...

‘Ensaio de Despedida’ e as relações sob o microscópio

Em um apartamento, quatro personagens se revezam em uma corda-bamba entre o real e a encenação. Mas, não seria a encenação também real? Afinal, todo mundo tem um mundo de personas em si. No filme realizado pelo Ateliê 23, os talentos de Júlia Kahane, Taciano Soares,...

‘Alexandrina — Um Relâmpago’: releitura imagética da mulher negra e amazônica

Existe um apagamento da história negra na Amazônia, o qual sutilmente a professora de história e pesquisadora Patrícia Sampaio denomina de silenciamento. O trabalho que ela desenvolve em seu núcleo de pesquisa acadêmica na Universidade Federal do Amazonas escoa em...

‘Cem Pilum – A História do Dilúvio’: animação valoriza a importância das lendas

“No tempo antigo era muito violento. Existiam mais animais ferozes do que pessoas, e Deus Criador quis acabar com as cobras, onças e outros animais. Então ordenou o dilúvio”. Essa é a sinopse do mais novo grande filme de Thiago Morais, lenda e notório nome do...

‘Galeria Decolonial’: a construção de um olhar singelo sobre a Amazônia

O poeta e pesquisador paraense Paes Loureiro, ao se debruçar sobre a cultura amazônica, destaca alguns pontos que considera essenciais sobre o que é viver na região, dentre eles: o devaneio, a paisagem mítica e o lúdico presente no despertar imaginativo sobre os...