Chega a ser injusto grande parte da repercussão de “Azul é a Cor Mais Quente” ser causada pela cena de sexo de seis minutos entre as protagonistas. O vencedor da Palma de Ouro do Festival de Cannes deste ano se mostra muito mais do que isso: a obra é uma das melhores abordagens da adolescência já vistas no cinema e discute de forma aberta a questão da descoberta da sexualidade.

Baseado na graphic novel “Le bleu est une couleur chaude”, o filme mostra a trajetória de descobertas de Adéle (a atriz estreante Adèle Exarchopoulos). A primeira parte da trama mostra os conflitos da jovem ao não conseguir se interessar por nenhum rapaz, apesar de tentar um namoro malsucedido. Ao cruzar uma avenida de Paris, ela acaba vendo uma jovem moça de cabelo azul ao lado da parceira e a troca de olhares a deixa balançada. Após ir a uma boate GLS, as duas se reencontram e, pouco depois, começam a namorar. Porém, as perspectivas opostas de vida de cada uma e gostos pessoais diferentes acabam atrapalhando o relacionamento.

O grande mérito do diretor Abdellatif Kechiche é a capacidade de retratar a protagonista como uma adolescente normal. Nada da figura cheia de pudores, valores morais irrepreensíveis, sempre bela e maquiada, destinada a mudar o mundo e encontrar o amor da vida tão visto nos filmes do gênero. Adéle é uma garota que vai para a escola, janta ao lado dos pais, está sempre descabelada, dorme de boca aberta, pega ônibus, fica tímida ao perceber o interesse de um rapaz bonitinho do colégio, protesta nas ruas ao lado dos amigos sem exatamente saber o motivo, sente tédio da vida sem emoção e chora ao perceber os problemas que assumir gostar de uma garota podem trazer. Uma espécie de “Frances Ha” com crise existencial mais séria.

Para dar ainda mais veracidade ao que vemos na tela, a história de “Azul é a Cor Mais Quente” não procura apressar fatos com o objetivo de tornar tudo mais dinâmico. Aproximadamente 40 minutos de filme se passam até o primeiro diálogo entre Emma (Léa Seydoux) e Adéle. Poderia ser um defeito, porém, se temos a dimensão do impacto que aquele romance terá na vida da protagonista e a entrega da garota a tal ponto se deve aos momentos anteriores ao encontro esperado. Esse tom naturalista ganha força pelo roteiro capaz de criar bons diálogos e pela opção da utilização da trilha ambiente em vez de usar temas musicais.

Eis, então, que surge a já famosa cena de sexo entre as protagonistas. Deixando de lado as polêmicas declarações de Seydoux sobre a forma como Kechiche conduziu as gravações durante as filmagens, a sequência possui um toque tão natural que traz o impacto necessário para dar a grandeza do passo dado por Adéle na descoberta da própria sexualidade. Isso fica evidenciado pela entrega das atrizes e na escolha de mostrar todos os detalhes da relação.

Assim como a trilogia de “Antes do Amanhecer”, somos testemunhas em “Azul é a Cor Mais Quente” da construção e degradação do romance das protagonistas. Se Emma fica encantada pela coragem e pureza da protagonista, Adéle percebe na amante uma figura sedutora pela inteligência e ousada pela forma de assumir a homossexualidade perante a sociedade. Como em qualquer relacionamento, porém, as diferenças surgem ao longo do tempo e saber lidar com isso determina a duração de um casal.

Nesse ponto, Adéle se torna ainda mais interessante, pois, mesmo com a passagem do tempo, os questionamentos sexuais continuam a afligi-lá. Seria a protagonista homossexual por gostar de Emma? Conseguiria se envolver com outras mulheres ou somente com Emma? E os casos com os homens? “Azul é a Cor Mais Quente” mostra que, sexualidade à parte, o amor a uma pessoa e o que se cria com ela é mais forte do que a definição pura e simples de hétero ou homo. Nada disso, claro, seria possível sem o talento de Exarchopoulos, uma atriz capaz de se entregar totalmente a um papel tão importante e desafiador, coroado pela emocionante e desesperadora cena do reencontro no bar.

Realçando o azul em todos elementos cênicos (do colchão de Adéle ao cano da cena final), “Azul é a Cor Mais Quente” se tornou em três horas o que “Malhação” busca há 19 anos: retratar o adolescente sem estereótipo, colocando um debate importante sobre a sexualidade para a sociedade.

Pena que a censura no Brasil deverá ser de 18 anos. Tudo por causa da polêmica cena de sexo.

Amadurecemos um dia! Espero!

Pôster de Azul é a Cor Mais Quente