“O Senhor viu. O Senhor viu. A morte de uma inocente criança e a minha vingança. O Senhor permitiu! Não Te entendo. Não Te entendo! No entanto, agora eu imploro seu perdão. Não conheço outro modo de viver.”

Incluído no rol dos maiores clássicos de Ingmar Bergman, “A Fonte da Donzela” é um dos filmes esquecidos e desprezados pelo diretor. O drama que foi seu primeiro Oscar, ele que viria a receber quatro ao longo da carreira, caiu na insatisfação do seu realizador. Inspirado pelo mestre Victor Sjöström no uso das paisagens naturais, bem como no cinema japonês, em particular o trabalho de Akira Kurosawa, Bergman retorna a temática religiosa com roteiro adaptado de responsabilidade da escritora Ulla Isaksson – roteirista anteriormente de “No Limiar da Vida”. O texto, baseado em um canto folclórico pelo qual o cineasta se interessou na juventude, aborda a dualidade cristã, a relação indissociável entre luz e trevas, em um belo recorte da Suécia medieval.

No Norte do país, a próspera família formada por Töre (Max von Sydow), Märeta (Birgitta Valberg), sua única filha e os criados, vivem em uma afastada fazenda. Cristão devotos, eles enviam sua inocente e pura Karin (Birgitta Pettersson) à igreja da região para entregar velas em honra a Virgem Maria. Acompanhada da criada Ingeri (Gunnel Lindblom), secretamente pagã, nutrida por ódio contra a adolescente pela boa vida que leva, as duas seguem viagem pelo idílico cenário. Durante o longo caminho, a garota é abordada por dois pastores e o pequeno irmão. Depois de cear com homens, Karin é abusada e brutalmente assassinada, tudo assistido por Ingeri. Os criminosos fogem com os pertences da menina, contudo acabam pedindo abrigo na casa de Karin. Acolhidos pela família, sem saber eles tentam vender as vestimentas para a mãe Märeta, que reconhece as roupas. Consumidos pela ira, ela e o marido se entregam a vingança pela morte da filha.

Contextualizado na Suécia do século 13, momento de tumultuosa transição do paganismo para o cristianismo, “A Fonte da Donzela” embarca no modelo moral responsável por difundir a ordem cristã na época. Ulla Isaksson reelabora a Lenda de Töre, um homem que tem as três filhas assassinadas pelos próprios filhos bastardos, após matar os assassinos, promete construir uma igreja como arrependimento. Assim como no folclore, ainda que com algumas alterações – no filme Karin é filha única e os criminosos não tem relação com a família – o roteiro de UIla preserva os temas abordados: a perda dos valores cristãos diante da crueldade, o desejo de vingança e principalmente o sentimento de culpa, permeiam os principais personagens. Ainda compreendido como um estudo de estupro e vingança, esses elementos são meio para seu fim, a redenção espiritual do homem.

Sobretudo, esse é um filme sobre espiritualidade. Mesmo desenvolvido na redução humana os seus impulsos naturais, é o entendimento dos personagens enquanto falhos por natureza, a misericórdia divina como única forma de libertação do homem da sua condição, a mensagem do longa. A aceitação daquilo que não se pode compreender para a busca constante de purificação. Bergman sempre afirmou que sua relação com religião era intelectual. Talvez, por essa razão, o cineasta tenha considerado a narrativa ineficaz na construção da ideia de Deus. A falta de uma execução mais analítica, deixa a narrativa cair no cliché do didatismo do conto original. Karin, a representação cristã, é uma virgem sempre bem vestida e fraterna. Em contraponto, a pagã Ingeri, suja e conhecedora do pecado da carne, deixa-se tomar pela inveja.

Diferente da abordagem intelectual feita em “O Sétimo Selo”, aqui a narrativa trata de uma busca essencialmente emocional. O fazendeiro Töre não tenta compreender a tragédia, ele se vinga, entende sua falha humana e, por fim, implora a graça divina. Exatamente como Ingeri, ela também tem seu arrependimento. Embora exista o realce na natureza pecadora do ser, impossível de suprimir, é mantido o apelo moral do folclore, a graça divina como único caminho. Aspecto muito bem exibido nas cenas de súplica do pai e da jovem Ingeri ao lavar o rosto na fonte de Karin, símbolo da sua purificação espiritual.

Aliás, novamente Bergman introduz símbolos cristãos usados anteriormente. Como Árvore da Vida, a Santa Ceia e a Sagrada Família refletida na família de Karin, presentes também em “O Sétimo Selo”. Vale dizer, que é com a primeira alegoria que Max von Sydow protagoniza uma das cenas mais bem construídas do filme, quando Töre tenta ceifar uma árvore como preparação antes da sua vingança.

“A Fonte da Donzela” dividiu a crítica quando foi lançada. Definida por alguns como um material sensacionalista apoiado em violência gratuita. A cena de estupro, a qual nem se compara ao que é feito no cinema hoje, foi até mesmo censurada em alguns países como Estados Unidos. Porém, é Bergman o crítico mais ferrenho da obra, o diretor taxou o longa de “aberração”, além de “uma péssima imitação de Kurosawa”. Entretanto, explorando muitos subtemas, mas especialmente a dicotomia espiritual, Bergman retrata muito bem a expressão e tradição popular do seu povo. O filme aproveita com cuidado o fragmento da história para contar ao seu modo, ainda que não plenamente, o embate emocional da religião na vida humana.