Sexto filme na carreira de Ingmar Bergman, “Prisão” é, na verdade, o primeiro longa de autor do sueco – integralmente concebido por ele. O roteiro original é resultado de dois momentos de criação, primeiro o diretor escreveu o conto sobre Birgitta Carolina, núcleo da trama, no verão seguinte ele compôs o texto final. Bergman apresentou o argumento ao velho parceiro Lorens, dono de uma produtora, ele apoiou a execução do trabalho com a condição de manter o orçamento baixo. O que não foi problema, o diretor relevou depois não ter recebido nada pela produção, o que segundo ele foi pontuado pelo executivo como sacrifício para realizar um filme artístico. Bergman fez uso da técnica desenvolvida por Hitchcock de trabalhar de maneira compacta, abusando de planos longos.

A independência garantida ao cineasta resultou em uma trama condensada em um núcleo e duas camadas. O enredo se desenrola em torno de Birgitta Carolina (Doris Svedlund), uma prostituta de 17 anos, constantemente abusada psicologicamente pelo cafetão Peter (Stig Olin) e Linnea (Irma Christenson), os dois articulam o aborto na jovem do bebê que espera. Presa à culpa, ainda atormentada pelas violações oriundas da sua realidade, culminam no trágico fim da garota. Em paralelo, o casal de desajustados Thomas (Birger Malmsten) e Sofi (Eva Henning) vivem uma relação nociva completamente sem propósito, ela sem saber conduzir o relacionamento, e ele apaixonado por Birgitta. No outro arco, camada que abre e fecha o drama, o diretor de cinema Martin Grandé (Hasse Ekman) recebe durante suas filmagens a visita de um antigo professor de matemática (Anders Henrikson), quem afirma possuir uma ideia genial para próxima produção do cineasta, um filme sobre o inferno na terra, ou melhor, a vida nela como verdadeiro inferno.

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O conceito apresentado pelo professor na introdução do longa, rejeitado e debochado pelo diretor, no decorrer da sequência se revela muito mais que devaneio. O miolo narrativo parece provar a “tese” do homem da vida comandada pelo Diabo. Revestido da máxima de Nietzsche sobre a “morte de Deus”, a existência trágica de Birgitta Carolina e a inadequação do casal confirma a dualidade intrínseca à ideia de bem. No final da narrativa, os outros personagens parecem entender isso depois dos eventos fatídicos, a dialogo repete o pensamento pontuado na primeira cena: “a vida é simplesmente um arco cruel e sensual do berço ao túmulo”.

Nesse sentido, “Prisão” é em essência a primeira obra de Bergman, o trabalho que mais guarda relação com a filmografia autoral do realizador. Resultado alcançado, claramente, pelas circunstâncias em que o longa foi gerado. Partido de um texto original, ademais da completa liberdade para criar. O perfeito uso dos demônios que o atormentam pelo diretor, permitiu ao cineasta esboçar o que ganharia contorno nos seus trabalhos futuros.


Sede de Paixões (Törst), 1949

Baseado em uma coleção de contos de autoria da sueca Birgit Tengroth, também presente no longa, com roteiro de responsabilidade de Herbert Grevenius, “Sede de Paixões” narra, no contexto do pós-guerra, a história de Rut (Eva Henning), bailarina devastada pela cicatriz deixada por um relacionamento anterior, tenta se reconectar com o atual marido (Birger Malmsten) durante o retorno para casa depois de uma temporada na Itália. Por sua vez, Viola (Birgit Tengroth) é uma viúva tentando conviver com depressão, enquanto resiste aos avanços daqueles que ela busca algum apoio.

O enredo trabalha uma série de temas anteriormente abordados por Bergman. O ponto cerne aqui é a agonia psicológica vivida pelas personagens centrais, especialmente Rut. Desenvolvido usando mais de uma linha tempo, o espectador conhece a razão da inquietude da protagonista interpretada por Henning. O diretor ambienta as atitudes da mulher, apresentando seu relacionamento abusivo anterior, sua carreira fracassada como bailarina e o estopim para sua angustia, o aborto realizado. Ao engravidar do ex-amante, um oficial que conheceu durante o verão, o homem não reconhece a paternidade, obrigando a mulher interromper a gravidez. A infelicidade é o mote da personagem refém de um passado que a tortura, além de influir negativamente tanto no seu atual casamento, como na relação consigo mesma.

No outro ponto narrativo, o foco é transportado para Viola, uma mulher com resistência em superar a morte do marido, ela sofre com as investidas agressivas do seu psiquiatra. Depois de se libertar do homem, é confrontada com a tentativa de sedução pela sua amiga de escola Valborg (Mimmi Nelson), colega de Rut nos tempos de balé. As cenas entre as personagens de Birgit e Mimmi causaram comoção no lançamento do filme pelo conteúdo lésbico. A censura cortou uma parte substancial da dinâmica entre as personagens, o que segundo Bergman deixou o quadro pouco sólido, além de incompreensível para o público. Difícil apurar o quanto as sequências cortadas alterariam o produto, contudo, o resultado depois da censura não é satisfatório. A construção da personagem de Nelson cai no estereótipo de “lésbica predadora”, sem o exploitation popularizado posteriormente nos filmes de vampiras dos anos 70.

Aliás, é por meio das relações interpessoais que o desenvolvimento tenta conectar as duas personagens. Infelizmente, o roteiro de Herbert não é eficiente o suficiente em unir os dois pontos da trama. O laço sem força desarticula toda narrativa. Sem conseguir estabelecer coexistência, a ausência de união lógica entre os dois cenários, deixa a história de Viola solta em meio ao enredo, quase aleatória. A unicidade do longa não funciona bem, muito mais pelo seu texto do que pela construção do diretor que também falha em conectar bem suas partes. Ainda assim, a exposição da miserabilidade do ser, tão típica do cineasta, continua a flutuar para completa edificação do ideal de Bergman.

CURIOSIDADES

  • O fato da protagonista de “Prisão” ser funcionária de uma famosa loja de departamentos sueca que se prostitui nas horas vagas, causou revolta nos funcionários reais da loja no lançamento do filme. A polêmica foi tamanha que eles emitiram uma nota de repudia ao longa. Bergman não deixou por menos, dias depois se pronunciou no mesmo jornal, afirmando não existir motivos para não continuar exibindo a versão integral do filme.
  • Ingmar atribuiu a Birgit Tengroth uma enorme contribuição para seu cinema. O cineasta conta que durante o processo de formação de “Sede de Paixões” foi ideia de Birgit estruturar o enredo com sutilezas e gestos sugestivos, particularmente notados nas cenas entre ela e Mimmi Nelson. Segundo ele, isso se tornou um importante elemento nos seus trabalhos futuros.