Quando o advogado Saul Goodman apareceu pela primeira vez num episódio da segunda temporada de Breaking Bad, ele era basicamente uma caricatura. Vestido com roupas berrantes e estrelando um comercial bizarro na TV, ele representava o estereótipo supremo do advogado corrupto na mente de Peter Gould, o roteirista daquele episódio em particular, e de Vince Gilligan, o criador do seriado. Era o trambiqueiro-mor, uma figura feita para acabar com todos os demais trambiqueiros. Com o tempo, Saul virou um personagem interessante, um pouco mais humano e um dos mais queridos da série, mas ele nunca deixou de ser completamente caricatural.

better call saul netflix saul goodmanDepois de todo o sucesso e aclamação – merecidíssimos – de Breaking Bad, Gould e Gilligan se reuniram e perceberam que ainda havia algo a se explorar dentro da história de Saul Goodman. Então nasceu Better Call Saul, uma série ambientada antes de Breaking Bad dedicada a essa figura tão curiosa. Prequels sempre atraem desconfiança e, antes do lançamento, muitos se perguntaram se Saul podia sustentar sua própria série. Porém, não é que Gilligan e Gould conseguiram criar um projeto interessante? Um seriado que ao mesmo tempo dialoga com seu irmão mais famoso e o complementa, e também demonstra ter capacidade suficiente para ter vida própria.

O primeiro episódio abre com um prólogo em preto-e-branco desolador que enfoca rapidamente um pouco da vida de Saul após os eventos do final de Breaking Bad. Paranoico e trabalhando numa lanchonete, ele passa suas noites revendo velhas fitas de vídeo com seus antigos comerciais gravados… Então voltamos alguns anos no tempo e logo reconhecemos a velha Albuquerque de Breaking Bad, retratada como um purgatório de calor opressivo, pessoas sufocadas e vastos espaços abertos.

É numa sala de júri que encontramos Saul, quando ele ainda era Jimmy McGill – e Bob Odenkirk retorna ao papel como se o tempo não tivesse passado. Outra fita de vídeo revela ao júri detalhes de um crime chocante, e o pobre Jimmy faz o que pode para livrar seus clientes da enrascada. Ele anda por aí num carro amarelo velho e barulhento, seu escritório – e casa – fica na parte de trás de um salão de manicure, e regularmente ele visita seu irmão Chuck (o sempre ótimo Michael McKean, a quem Gilligan conheceu nos seus dias de Arquivo X). Chuck sofre de uma estranha aversão a aparelhos elétricos e precisa de ajuda. Ah, e o vigia da guarita onde Jimmy estaciona seu carro é um senhor implicante e sério, ninguém menos do que o Mike de Breaking Bad (Jonathan Banks).

Ao longo da temporada vemos Jimmy batalhando para fazer seu nome ser notado frente à concorrência da firma de advocacia onde Chuck trabalhava, a Hamlin Hamlin & McGill, HHM. O vemos também armando um pequeno trambique que acaba rendendo uma participação inesperada de um velho conhecido de Breaking Bad logo no início. O retorno desse personagem, apesar de divertido, deixa no ar uma impressão de que Better Call Saul acabará sendo muito dependente da outra série. Felizmente, os roteiristas e produtores rapidamente revertem essa expectativa e se esforçam para trilhar seu próprio caminho com o decorrer dos episódios.

E a jornada de Jimmy é o maior diferencial aqui. Surpreendentemente, ele é mostrado como alguém que, no fundo, é uma boa pessoa, ele só não consegue uma chance. Ele luta para salvar um casal de clientes em potencial e em dado momento, se vê frente a uma pequena fortuna, a qual ele decide devolver – “preciso fazer o que é certo”, ele diz a Mike, um eventual parceiro.

Mike é outro grande elo com Breaking Bad, e um dos melhores episódios de Better Call Saul é o sexto, Five O. Trata-se basicamente de uma hora dedicada a Mike e sua história trágica, e na qual Saul vira coadjuvante aparecendo apenas em poucos minutos. Banks é, como sempre, sensacional no papel, e seu monólogo na cena final do episódio deve render ao ator algumas indicações a prêmios…

Há outras referências à série de Walter White ao longo dos episódios, mas tirando a aparição surpresa na primeira hora, as demais são mais sutis, como o comentário direcionado a Mike sobre as tarântulas que vivem no deserto do Novo México, ou a piada envolvendo Kevin Costner, mencionada por Saul em Breaking Bad… Muitos dos membros da equipe de Better Call Saul trabalharam na série anterior e esta nova produção continua tão estilizada quanto Breaking Bad: não há nenhum momento desperdiçado em nenhum dos episódios e sempre há alguma coisa interessante acontecendo visualmente. Dois momentos de estilo se destacam: a lixeira filmada em primeiro plano, gigantesca, na qual Jimmy descarrega suas frustrações em Uno, o primeiro episódio; e a sequencia sem diálogos na qual Mike espiona e invade uma casa em Bingo, o sétimo.

better call saul art netflixPorém, a caracterização dos personagens e as atuações são tão importantes quanto o estilo. É um prazer ver Odenkirk e McKean atuando juntos – e quem diria que o primeiro podia ser tão eficiente como ator dramático? E o relacionamento entre Jimmy e Chuck é primordial para a temporada e para a evolução do personagem. Os atores tornam esse relacionamento tocante, o que de certa forma amplifica a tragédia da série.

Sim, apesar do humor, Better Call Saul é, assim como Breaking Bad, uma tragédia. Sabemos o que vai acontecer com Jimmy, e é notável a forma como os roteiristas usam as expectativas do publico a seu favor. Mas não sabemos como, ou porque, ele chegará a esse destino. A transformação dele é de advogado criminal a advogado “criminoso”. Apesar de ser esforçado e uma boa pessoa, o destino dele é deixar de ser humano, deixar de ter escrúpulos, deixar de “fazer o que é certo”. Ele vai se transformar naquela caricatura chamada Saul Goodman, cujo nome é uma corruptela da expressão em inglês “it’s all good, man” (está tudo bem, cara). Vê-lo percorrer esse caminho promete ser uma experiência tão engraçada quanto dramática. E de novo, Vince Gilligan, Peter Gould e seus roteiristas transformam Albuquerque num teatro grego. Só que agora também nos relembram o quanto a tragédia está próxima da comédia.