Jimmy McGill conhece muitas piadas de advogado. Numa cena de flashback desta segunda temporada de Better Call Saul, ele conta várias à esposa do seu irmão Chuck, e ela ri bastante. Mais tarde, sozinhos no quarto, Chuck tenta contar mais uma piada de advogado e falha – sua esposa responde apenas com um sorriso amarelo. Essa cena se passa numa época em que Jimmy estava começando na firma de advocacia Hamlin Hamlin McGill. Era uma época em que Chuck não sofria com seu distúrbio psicológico causado por eletricidade. Poxa, ele tinha uma esposa! Todos pareciam felizes, mas o espectador nota uma hostilidade subjacente, um clima levemente estranho no ar, a sensação de que não existe realmente um amor fraternal por Jimmy pela parte de Chuck.

A exploração desses conflitos não ditos, não verbalizados, é a matéria-prima da série, ainda mais nesta temporada. É uma temporada de ritmo mais pausado – certamente alguns espectadores e críticos se referiram a ela como “lenta”, como se isso fosse obrigatoriamente um palavrão. Bem, não é tão frenética quanto alguns trechos de Breaking Bad, o já clássico seriado para o qual Saul serve como prequel. Mas é justamente este o objetivo dos criadores e produtores Vince Gilligan e Peter Gould: eles querem que o espectador preste atenção, perceba os detalhes da jornada, os “comos” e “porquês” que definirão as personalidades de Jimmy (Bob Odenkirk) e Mike (Jonathan Banks). No futuro, eles se tornarão o advogado picareta Saul Goodman e… Bem, O Mike, aquele mesmo que apareceu pela primeira vez para tomar conta do cadáver da namorada de Jesse em Breaking Bad, o sujeito metódico e 100% profissional a serviço do crime.

Quando a temporada começa, Jimmy está na crista da onda, aproveitando as consequências do seu trabalho no caso contra a empresa Sandpiper. Ele consegue seu escritório e a sua sonhada mesa de cocobolo, porém essas coisas têm um preço: a completa obediência ao correto processo legal e ao trabalho “das 9 às 17h”. Mas faz pouco tempo que seu amigo trambiqueiro Marco faleceu, e ele ainda usa o anel do falecido no dedo. A advocacia passa a ter outro significado para ele, para o qual ele tenta arrastar Kim (Rhea Seehorn), e ambos até engatam um romance.

E o Mike? Suas missões como guarda-costas em pequenas transações de drogas o levam a conhecer um cara, que conhece outro cara… E logo ele se vê lidando com o clã dos Salamancas, aqueles mesmos vistos em Breaking Bad – aliás, a atenção aos detalhes é tão grande que muitos elementos da série anterior aparecem neste ano, vale prestar atenção. Mas, voltando ao Mike, é fascinante como, aqui, ele ainda não é a mesma figura que fez o clássico discurso “Sem meias medidas” para o Walter White. Em Saul, o Mike age como profissional, mas comete erros, ainda não é tão calculista. Ele e Jimmy seguem trajetórias meio paralelas nesta temporada e aparecem pouco juntos. Mas, ao longo dos episódios, fica claro como ambos são mostrados como versões espelhadas um do outro.

Claro, a série mostra isso visualmente: Mike frequentemente é visto espionando à distância, com binóculos; e Jimmy é visto fazendo o mesmo no penúltimo episódio num momento dramático. Aliás, visualmente falando Saul é, como Breaking Bad, um deleite visual – até mesmo Jimmy mostra seus dotes de cineasta em alguns momentos divertidos. O trabalho de figurino é sensacional: no terceiro episódio Jimmy fica o tempo todo com um terno cinza bem cafajeste, ao fazer algo que sabe que não será bem recebido pela sua nova firma; e o seu encontro com um boneco inflável dá origem a uma divertidíssima sequência com split-screens, piadas visuais e música, na qual as origens do senso de moda de Saul Goodman são reveladas. Há também uma energética sequência com Kim e seus post-its coloridos, na qual a personagem é vista correndo atrás de potenciais clientes.

E depois de ver, quem se esquece do sensacional plano-sequência de abertura do episódio “Fifi”, uma homenagem a A Marca da Maldade (1958) de Orson Welles, quando a câmera no nível do chão alça voo e sobrevoa o posto de fronteira entre Estados Unidos e México, e continua acompanhando um caminhão que o atravessa? Ou a sutil cena na qual vemos Kim como o proverbial “pote de ouro no fim do arco-íris”, enquanto Jimmy pinta de marrom uma parede em primeiro plano? Cada episódio trabalha visualmente esses sentimentos não verbalizados dos personagens, às vezes sutilmente, às vezes de maneira mais clara, e é como se estivéssemos vendo um refinamento ainda maior do estilo de filmagem de Breaking Bad, se é que isso é possível. São muitos os exemplos de cinematografia brilhante no seriado: a grande maioria das cenas é filmada da forma mais visual possível, exigindo a atenção do espectador.

Atenção que é recompensada quando percebemos a evolução não só do Jimmy – que até passa alguns episódios em banho-maria, sem detrimento para a série – mas também do Mike e da Kim. Esta, em especial, agora se torna praticamente a heroína da série, graças à qualidade dos roteiros detalhando a sua evolução e ao desempenho vivaz de Seehorn. Algumas das melhores cenas são criadas pela atriz e é impressionante como em alguns momentos ela diz muito apenas com sua linguagem corporal e seu rosto. E é realmente de partir o coração vê-la com Jimmy – afinal, como já sabemos da sua transformação em Saul Goodman, intuímos que alguma coisa ruim terá de acontecer com os dois.

Porém, até lá, são estes três personagens que procurarão saídas para as suas prisões e problemas em meio à Albuquerque concebida por Gilligan e Gould. Jimmy, Mike e Kim se deparam com problemas e lutam para definir, eles próprios, as suas vidas e os seus lugares no mundo, sem depender dos outros. O que nos traz de volta ao Chuck (Michael McKean, excelente). Como grande advogado, Chuck é quem está em posição de ajudar, ou destruir, pelo menos dois destes personagens. O relacionamento entre Jimmy e Chuck é o mais importante do seriado, e ao longo da temporada vemos as pequenas origens do grande ressentimento presente entre os dois irmãos. Ambos embarcam numa verdadeira “guerra fria” sob o calor de Albuquerque, e esse conflito promete esquentar no futuro, pois o segundo ano de Better Call Saul termina deixando um poderoso gancho para a próxima temporada.

As consequências desse gancho nós podemos imaginar, tendo visto Breaking Bad. Mas é aí que Better Call Saul se revela uma das poucas prequels já feitas que realmente funcionam: além de se sustentar por si própria, nesta série os criadores brincam com nossas expectativas e, de maneira tocante, até demonstram grande carinho pelos seus personagens. Tem-se a sensação de que eles quase não querem que Jimmy se transforme em Saul, mas isso é inevitável. A piada precisa ter um final, no fim das contas, e é provável que ninguém ria quando ela acabar de ser contada. Mas acompanharemos com muito interesse.